O Brasil é o que asfixia e mata.
O Brasil é a chacina.
Toda a beleza e todo respiro que existem
vieram a ser apesar do Brasil.
J. Mombaça [2]
E quem, em sã consciência, poderia ousar um título em que se lê a palavra “saída”? Longe de pretender nos orientar em direção a caminhos possíveis, o que esse artigo propõe é pensar a condição brasileira a partir da imagem de uma imensa rodovia, estas que nos tomaram a beleza, cortaram nossas florestas e ainda são a marca de um projeto desenvolvimentista predador do meio ambiente e de todo ser vivente que dele depende. A longa etapa do nacional-desenvolvimentismo deu lugar à lógica neoliberal sem ter chegado a oferecer um estado de bem-estar social. Seguimos viajando, rumo a lugar nenhum, gastando combustível fóssil caro e finito, em uma espécie de road movie sem fim ou finalidade. Não há glamour na viagem, mais parecida com a errância de Nomadland – um longa-metragem que desde sempre poderia ter tido o Brasil como cenário.[3] Talvez tudo fosse um pouco diferente se as metáforas que tentam explicar o país estivessem menos relacionadas a meios de transporte, como “recolocar a economia nos trilhos”, “alçar novos voos” ou “perder o bonde da história”. Na lenda da “descoberta” do Brasil, somos um erro de rota e Cabral e suas caravelas esbarraram no litoral da Bahia por acaso, depois de terem perdido o rumo do cabo da Boa Esperança em direção ao Caminho das Índias. Tomando o desvio como mito de origem, em alguma medida confirmamos a destinerrância que insiste em nos afastar do futuro prometido. [4]
Do filósofo Paulo Arantes,[5] recupero a ideia de que crescemos à sombra de um diagnóstico de “país do futuro” cujo fracasso é sempre antecipado pelos seus formuladores. Dito de outro modo, somos anunciados como país do futuro sempre que quem assim nos apresenta percebe, mais uma vez, que o futuro tantas vezes prometido não virá. Caberia, então, perguntar como pensar o que vem depois do fascismo se é da própria possibilidade do depois que se duvida. Esse artigo se equilibra, então, na tênue linha que separa o cancelamento do horizonte de futuro – aqui entendido como mera devastação – do fio que traça rumos talvez utópicos, talvez não. Nessa oscilação, há o grande, imenso risco de que pós-fascismo se reduza à luta pela restauração do passado, onde o horizonte é melancólico e está mais uma vez voltado para aquilo que o país poderia ter sido – “gigante pela própria natureza” – e não foi. [6]
A AUSÊNCIA DE FUTURO COM ARANTES E O DEVIR-NEGRO COM MBEMBE
Era o início dos anos 2000 quando Arantes mapeou diversos autores que pensavam a “brasilianização do mundo”: de forma muito resumida, a ideia central da brasilianização é que a divisão socioeconômica entre incluídos/excluídos na base da pirâmide sustentaria uma estrutura cuja base é formada por uma massa informe de trabalhadores em diferentes posições, todas precárias e subalternas. Já o topo é cada vez mais restrito, inatingível, indiferente ao que se passa abaixo mantendo a base em permanente estado de conflito pela disputa dos parcos recursos da gestão de excedentes, eliminando qualquer horizonte de emancipação. Nesse ponto, é importante lembrar que todos os projetos de desenvolvimento econômico – as diferentes etapas de industrialização e de urbanização, o projeto Brasil grande da ditadura civil-militar de 1964, a retomada do projeto nacional-desenvolvimentista dos governos do PT – tiveram como resultado o chamado “desenvolvimento desigual e combinado”, distribuindo mal a riqueza produzida, sistematicamente retornada às oligarquias locais dominantes. Um dos traços dessa desigualdade é a permanência, no tempo, da chave inclusão/exclusão, agudizada nas condições neoliberais em que o horizonte de emancipação não sobrevive nem como promessa.
Ao usar o termo emancipação, faço uma breve digressão: estou seguindo a distinção proposta por Rúrion Soares Melo[7] de que na teoria marxista há duas formulações de emancipação. A primeira, pela via da política, é pensada como um processo revolucionário; a segunda, pela via econômica, seria intrínseca ao capitalismo, trazendo em si as próprias condições de emancipação. Embora a diferença não seja especificamente relevante ao tema do artigo, considero importante explicitar que o termo emancipação aparecerá no texto de forma polissêmica, ora se referindo ao conceito marxista, ora apenas tomando seu uso mais corriqueiro, como mobilizado no pensamento feminista, por exemplo. A expressão “emancipação das mulheres” se destina, antes de tudo, à reivindicação de libertação e independência do jugo dos homens e senhores, ainda que para as feministas marxistas a emancipação passe pela libertação do trabalho não remunerado de reprodução material da vida.[8] Em Arantes, interpreto a noção de emancipação como um conceito marxista, sobretudo em seu aspecto de processo revolucionário, por entender se tratar, em primeiro lugar, de analisar as condições de transformação do trabalho na fase atual do capitalismo, esta que o filósofo Achille Mbembe compara ao momento de acumulação primitiva da primeira fase da colonização das Américas. Já Mbembe não opera com o conceito marxista de emancipação, o que talvez tenha me levado a criar um problema metodológico ao fazer dialogar autores de tradições distintas. Decidi correr esse risco considerando que, hoje, a crítica à fase atual do capitalismo precisa e tem se valido de uma aliança epistemológica entre teoria crítica – onde situo Arantes – e pós-estruturalismo – onde aloco Mbembe –, na medida em que passa a ser preciso analisar, ao lado das condições materiais de opressão, a captura subjetiva das formas de vida da lógica neoliberal. Fim da digressão.
A inexistência de qualquer horizonte de emancipação é parte fundamental da lógica neoliberal e do cenário que se confirmaria nas eleições de 2016 nos EUA, momento de emergência de forças de extrema direita até então restritas a nações de menores dimensões, como a Hungria ou as Filipinas. A ascensão de Donald Trump à Casa Branca comprovava a previsão de Arantes, qual seja, a de que a repetição das condições de fratura social da brasilianização seriam propícias à emergência de tipos contemporâneos de fascismo ou de governos populistas autoritários de extrema-direita, que se evidenciaria também no Brasil, mas não apenas. É longa a lista de países em que a extrema-direita chega ao poder – ou pelo menos lhes arranca um naco – em nome da promessa de mudanças radicais ao modelo em que a gestão de incluídos/excluídos se sobrepõe a transformações mais radicais e profundas na organização da vida social e econômica, sempre em nome da necessidade de governar a partir de critérios técnicos e justificados pelo argumento de que “não há alternativa”. Talvez, na história da fratura social brasileira, nunca tenha havido.
A dimensão das forças políticas de direita na sociedade brasileira não é exatamente uma novidade: pesquisas do sociólogo Antonio Flavio Pierucci[9] , com entrevistas realizadas entre 1986 e 1987, em pleno entusiasmo com a renovação que a Nova República pretendia representar, já indicavam que sequer era preciso voltar aos tempos do integralismo para identificar a persistência de valores de direita na sociedade brasileira. Ao ouvir, em São Paulo, eleitores de Paulo Maluf e Jânio Quadros, Pierucci encontrou valores morais característicos do pensamento conservador: racismo, misoginia, xenofobia, ódio aos migrantes – sobretudo aos nordestinos – formavam o caldo de cultura das suas entrevistas qualitativas.[10] As quatro décadas que se passaram entre 1986, data da primeira eleição direta para governador e 2016, ano do golpe que derrubou a presidenta Dilma Rousseff durante o exercício do seu segundo mandato, não foram só marcadas pelos signos da expansão do campo progressista, como a emergência de novos movimentos sociais ou as conquistas de direitos na Constituinte de 1988. Em rotas paralelas, cresciam o ideário de direita identificado por Pierucci e a violência institucional, policial, social – em uma palavra, colonial – contra mulheres, pessoas negras, pobres, periféricas, não-normativas, indígenas, ativistas, lideranças de movimentos sociais e hoje já alcança também jornalistas nacionais e internacionais e parlamentares eleitos.[11]
Nos anos 1980, no entanto, Pierucci percebeu que mesmo professando o ideário conservador completo, seus entrevistados se constrangiam em se autodeclarar “de direita”. Em quarenta anos, caiu o véu da vergonha e, hoje, há mesmo a exibição de um orgulho de assumir essas posições, apresentadas como radicais e transformadoras. A exibição do ideário de direita saiu do armário direto para as redes sociais da chamada alt-right (direita alternativa), sejam as alimentadas por robôs, sejam as fomentadas por ativistas convictos de suas posições de suposta superioridade moral. A pergunta “o que vem depois do fascismo?” passa a ter que levar em conta esse fenômeno sociocultural, mesmo que seja necessário não considerá-lo apenas espontâneo, mas também algorítmico: o que era inibição se transformou em soberba e presença ostensiva de valores morais restritivos, cuja tônica são as formas de violência e segregação. É pela violência que as reivindicações de ampliação de universalidade – chamadas pejorativamente de “pautas identitárias” – são abafadas, quando não caladas à força pela figura paradigmática do “cidadão de bem”, cujo principal objetivo é eliminar as diferenças em favor da hegemonia da sua forma de vida.
Talvez, o primeiro problema em pensar o tempo do depois seja a necessidade de analisar as condições de possibilidade de implosão desta estrutura piramidal que permanece intacta e impede qualquer perspectiva de emancipação. Essa abertura depende, acredito, da superação das condições coloniais que nos constituíram como mero lugar de exploração. Na história do Brasil, o futuro só se configura como promessa cínica e desde sempre perdida (como na concepção psicanalítica de objeto desde sempre perdido, este que nunca esteve lá, cuja produção traumática se dá a partir de uma experiência de perda que nos é originária. Ou, para falar como Jacques Derrida, a não-origem da origem). Nessa herança colonial não superada está a naturalização da violência cotidiana que desde sempre nos divide em vida nua e vida qualificada, vida vivível e vida matável, retornando sempre ao mesmo modo de aniquilação da possibilidade de existência que começa com o extermínio indígena e a diáspora negra da escravização.
Essa impossibilidade de existir, em alguma medida, explica por que a racionalidade neoliberal tenha se tornado tema de pesquisa na teoria psicanalítica. Vejamos, por exemplo, a definição de neoliberalismo fornecida pelo psicanalista Nelson Silva Jr: “O neoliberalismo depende da produção de sujeitos que entendam como naturais as formas de precarização social que, no nacional-desenvolvimentismo, seriam rupturas do pacto social. Tal naturalização é obtida através de um longo processo de transformação das formas de vida, incluindo-se aqui o trabalho, a linguagem e o desejo”.[12] A partir desse trecho, proponho algumas substituições, indicadas nos meus grifos: “O neocolonialismo depende da produção de sujeitos que entendam como naturais as formas de precarização social que, no colonialismo, também não seriam rupturas do pacto social. Tal naturalização é obtida através de um longo processo de imposição de formas de vida, incluindo-se aqui o trabalho, a linguagem e o desejo”. Observo que ele está se referindo a uma passagem do nacional-desenvolvimentismo ao neoliberalismo e eu, ao operar minha analogia, estou argumentando que, no contexto brasileiro de uma herança colonial não superada, colonialismo e neocolonialismo são formas de exploração que convivem como condição histórica permanente, apenas atualizado ao longo do tempo. Cairia por terra, assim, um lugar ideal para onde se pode voltar depois do fascismo. Bem ao contrário, essa nação idealizada só existe na chave de uma razão cínica, em que um passado imaginário e feliz se sobrepõe à imaginação de novas possibilidades de futuro, produzindo futuro algum.
Promovo o encontro entre Arantes e Mbembe porque com o primeiro consigo pensar essa promessa de futuro que ainda nos rege e, com o segundo, apontar para como a lógica colonial se funde à lógica neoliberal e neocolonial. De Mbembe retomo o devir-negro do mundo, aqui entendido como o modo atual de exploração máxima do trabalho precarizado, que se encontra com as formas inaugurais da exploração de mão de obra escravizada na primeira etapa da empresa colonial europeia; a rotina de violência militar e paramilitar; o encarceramento em massa, instrumento de gestão de população excedente; o extermínio da população negra e periférica, indicador de racismo estrutural não superado, sustentado por instituições de Estado e, mais ainda, como política de governo, produzindo desigualdade até na distribuição do direito ao luto e à memória; a pauta moral vocalizada por setores da extrema-direita encarnando a cantilena das missões civilizatórias, em que todos os arranjos afetivos ou familiares divergentes da norma devem ser expurgados em nome de um ideal normativo jamais alcançável e posta à serviço de novas formas de segregação; a expropriação de recursos ambientais que retomam o período mais primário de acumulação primitiva do século XVI.
Já escrevi em outro lugar sobre a possibilidade de articulação entre devir-negro do mundo e brasilianização. [13] Tenho insistido nesse encontro por entender que, quando Mbembe propõe a noção de devir-negro do mundo, o faz pensando nas condições de exploração do trabalho que também estavam em debate nos autores a que Arantes recorre para pensar a brasilianização. Ambos fazem um giro temporal. No filósofo brasileiro, há um olhar para como um país movido a uma promessa de futuro que nunca virá se encontra com o futuro de países que decrescem em direção ao passado do qual nunca saímos.[14] Já o filósofo camaronês percebe que, no passado, o sofrimento do sujeito vinha da sua condição de ser explorado pelo capital e que hoje “a tragédia da multidão é já não poder ser explorada de modo nenhum, é ser relegada a uma ‘humanidade supérflua’, entregue ao abandono, sem qualquer utilidade para o funcionamento do capital”.[15] Ele está indicando a necessidade de pensar em antes e depois, já que a condição de exploração da classe trabalhadora tem se modificado ao longo do tempo, acompanhando as fases e necessidades do capitalismo. O devir-negro, em síntese, é o futuro do trabalho em condição máxima de exploração, em um retorno aos modos de escravização do início da modernidade colonizadora.
No caso brasileiro, o trabalho formal com proteção social tem data de nascimento recente, curta duração histórica e fim na reforma trabalhista capitaneada por Michel Temer, sem ter chegado a alcançar uma ampla maioria de trabalhadores/as. Um dos piores exemplos da vida curta é a morte precoce da PEC das domésticas, aprovação tardia, em 2012, de emenda constitucional que enfim atendia às reivindicações de direitos trabalhistas às domésticas. A PEC foi por décadas bandeira de luta de mulheres negras, estas que constituem quase 80% da mão de obra de trabalhadoras domésticas no país, teve curtíssima duração. Embora se mantenha formalmente em vigor, está arruinada pelas diferentes formas de flexibilização do vínculo laboral proposto pela reforma de 2016. Esse modo de exploração do trabalho, em vez de ter sido eliminado, se expandiu para inúmeras outras atividades e, hoje, a uberização do trabalho atinge uma grande parcela da classe trabalhadora. [16]
Os giros temporais de Arantes e Mbembe, a rigor, nos levam de volta a um lugar do qual nunca saímos: a condição total de exploração, um dos signos da semelhança entre a lógica colonial e a neoliberal. Seguindo Arantes muito de perto, um dos modos de impedir qualquer tipo de mudança é a permanente eleição de governos de conciliação, cuja base de sustentação está justo nas políticas de inclusão e seu inevitável contraponto, a exclusão. Essa avaliação encontra versões mais ou menos parecidas em diferentes autores e autoras. Em Chantal Mouffe, o diagnóstico é de que estamos vivendo um “momento populista” – ainda não compreendido pela esquerda – que nos levou ao que ela chama de “pós-democracia”, momento em que se perdem dois pontos de sustentação democrática: igualdade e soberania popular. Só isso já indica como o termo é de difícil aplicação ao Brasil. Mesmo assim, e embora ela avise que sua análise se restringe ao contexto de países europeus ocidentais, em uma passagem facilmente percebemos as semelhanças com a situação brasileira:
Podemos falar de um ‘momento populista’ quando, sob pressão de transformações políticas ou socioeconômicas, a hegemonia dominante é desestabilizada pela multiplicação de demandas insatisfeitas. (...) Como resultado, o bloco histórico que estabelece a base social de uma formação hegemônica é desarticulado, e surge a possibilidade da construção de um novo sujeito de ação coletiva – o povo – capaz de reconfigurar uma ordem social tida como injusta”.[17]
O trecho de Mouffe é uma possibilidade de descrever o que está acontecendo desde 2013. Esse “momento populista” é caracterizado pelo fato de que a solução para a crise ainda não está à vista, mais uma das semelhanças com o Brasil das eleições de 2022. [18]
Jacques Rancière fala em “ódio à democracia” desde 2005, também apontando para a prevalência da gestão tecnocrata sobre a política que, embalados pelo "não há alternativa", ignoram as reivindicações de mudança. Seria um caminho a tomar, considerando que a França é um dos países em que Arantes perscruta a brasilianização e seus efeitos sociais. Os coletes amarelos nas ruas de Paris e a exigência, por parte da polícia francesa, de usar os mesmos métodos da PM brasileira, são mais alguns indícios de que brasilianizar pode ser um movimento sem volta. [19]
Wendy Brown é mais uma autora capaz de nos fornecer percepções úteis para a crise do neoliberalismo e seus reflexos na emergência de governos de extrema-direita, porém, do meu ponto de vista, mais restritas ao contexto estadunidense. Ainda assim, interessa sua análise de que a combinação entre a queda do padrão de vida nos países do Norte global (esses que caminham para a brasilianização) e o fim do horizonte de expectativas (ou, em termos de Brown, a ameaça de cancelamento do futuro) levam a um inevitável “ataque de fúria populista à democracia, o que seria o menor dos perigos no horizonte”. [20] Sempre será preciso matizar as diferenças entre o alcance da democracia dos países do Norte global e a democracia à moda brasileira e acrescentar que, no nosso caso, uma saída militar tem estado sempre à espreita.
PROCURAR SAÍDAS
Ousei usar a palavra “saída” no meu título a fim de ecoar “Sair da grande noite – ensaio sobre a África descolonizada”[21], de Achille Mbembe, autor em quem estou me apoiando novamente, agora para interrogar o que aconteceu à sociedade brasileira pós-colonial. Localizo um ponto em comum com o seu diagnóstico a respeito dos países africanos: se nunca foi possível chegar a um modelo de sociedade mais justa, em grande medida isso se dá em função da manutenção de estruturas de poder e violência, mesmo quando os governantes foram eleitos e a democracia, reinstaurada. Necessário dizer que não se trata de desconsiderar as abismais diferenças entre viver em um regime democrático, ainda que de baixíssima intensidade, e viver em regimes ditatoriais de diferentes perfis, mas de sustentar a crítica à democracia incompleta brasileira como única condição de levar a sério a necessidade de mudança.
“Sair da grande noite” é de 2010. Ali, Mbembe também está dedicado a pensar o “depois”, o que justifica meu recurso a ele. Seu horizonte temporal é o momento do fim das grandes colonizações africanas, incluindo examinar as condições de possibilidade de emancipação dos povos colonizados e escravizados. Desde a introdução, o filósofo apresenta a pergunta “para onde vamos?”[22], traçando ali seu próprio diagnóstico do continente africano para um futuro imediato (a rigor, nas condições atuais só poderíamos considerar o futuro se imediato): “1) o desaparecimento de qualquer ideia de democracia que possa ser mobilizada como alternativa ao “modelo predatório” em vigor; 2) a falta de uma perspectiva de revolução radical em África; 3) o envelhecimento das forças políticas negras, que tem produzido, segundo ele, autodestruição em guerras de sucessão intermináveis; 4) o desejo de milhares de pessoas de viver em outro lugar que não seja o seu país; 5) práticas institucionalizadas de extorsão e predação que fazem da política “uma maneira de conduzir a guerra civil”. [23]
É verdade que Mbembe está analisando países recém-saídos da experiência colonial no século XX, o que por si só já traz uma dificuldade de uma mera aplicação desta análise ao Brasil, cujo bicentenário da Independência se comemora em 2022. Gostaria de ousar uma analogia, justamente considerando que só podemos ser sempre pensados como “país do futuro” por vivermos com os dois pés no passado colonial, cujas manifestações contemporâneas se dão em formas próximas às identificadas por Mbembe: 1) lá, como cá, não se pode mobilizar qualquer ideia de democracia, sobretudo considerando a democracia incompleta ou de baixa intensidade experimentada no Brasil desde a República; 2) a falta de uma perspectiva de uma revolução radical, a despeito cômodas promessas de mudanças em curso no Chile; 3) o envelhecimento das forças políticas e, com isso, a dificuldade, senão a impossibilidade, de renovação dos quadros partidários; 4) o desejo de milhares de pessoas de viver em outro lugar que não seja o seu país, o que no caso brasileiro estranha e curiosamente tem estimulado um forte processo migratório para o país colonizador, mas não apenas; [24] 5) práticas institucionalizadas de extorsão e predação que fazem da política “uma maneira de conduzir a guerra civil”, confirmadas pela família de milicianos no poder.
Como bem percebe de modo arguto o filósofo Edson Teles, de guerra civil nós entendemos bem. No seu prefácio à edição brasileira de “A escolha da guerra civil”,[25] ele evoca de Ailton Krenak a ideia de que “nós sempre estivemos em guerra” a fim de lembrar que, se o livro pretende analisar a lógica neoliberal a partir do mapeamento de suas formas autoritárias e violentas, é preciso antes de mais nada perceber que essas formas autoritárias e violentas sempre estiveram em vigor por aqui. Teles resume a proposta dos autores franceses assim:
A guerra civil neoliberal apresenta três características gerais: primeiro, pretende atacar os direitos sociais; segundo, alimenta-se de diferentes estratégias de ação; terceiro, utiliza-se de alianças com as oligarquias locais tendo por alvo coletivos populacionais. Essas práticas almejam, além da defesa da ordem global, um regime político e social antidemocrático, com a consolidação de uma liberdade que assegure nada mais que o empreendedorismo e o consumo.[26]
Essas três características constituem, por assim dizer, a vida social brasileira, o que torna possível avaliar que sempre estivemos em guerra porque, além do projeto permanente de extermínio dos povos indígenas a que Krenak se refere, o Brasil pode ser definido como um grande território ocupado por oligarquias locais que, em aliança com oligarquias internacionais, sustenta um projeto de sociedade que se move apenas e atrás de interesses econômicos. Aqui, estou seguindo Arantes muito de perto em seu diagnóstico de que a chamada formação social brasileira falha, em primeiro lugar, porque os interesses econômicos das elites expropriadoras são o único farol a nos guiar nesta viagem. Se é assim hoje, é porque foi assim antes, o que talvez explique a naturalidade com que o presidente propunha salvar a economia e abandonar às pessoas à morte por covid-19. Um dos problemas, portanto, é saber se a economia ainda estará no comando no que vem depois do fascismo. O debate acerca da responsabilidade fiscal exigida pelo mercado como dogma, em confronto com a proposição de suspender o teto de gastos a fim de manter um programa de distribuição de renda é indicador dos efeitos da economia no comando das diretrizes da vida social.
Há pouco mais de cem anos, em 1921, no contexto europeu entre guerras, o filósofo Walter Benjamin[27] identificou que o monopólio da violência de estado era mantido por três forças: a polícia, o militarismo e a pena de morte, identificados como o tripé de sustentação da formação do Estado-nação europeu. A essa percepção, Mbembe acrescenta a observação de que há uma diferença significativa nas sociedades coloniais e pós-coloniais: a condição permanente de guerra dissolve o monopólio da violência. Como no trecho a seguir, que serviria para descrever a situação brasileira hoje:
Cada vez mais, a guerra não ocorre entre exércitos de dois Estados soberanos. Ela é travada por grupos armados que agem por trás da máscara do Estado contra os grupos armados que não têm Estado, ambos os lados têm como seus principais alvos as populações civis desarmadas ou organizadas como milícias. (...) Muitos estados já não podem mais reivindicar o monopólio sobre a violência e sobre os meios de coerção dentro de seu território. Nem mesmo podem reivindicar monopólio sobre seus limites territoriais. (...) Milícias urbanas, exércitos privados, exércitos de senhores regionais, segurança privada e exércitos de Estado proclamam, todos, o direito de exercer violência ou matar”.[28]
A citação é de "Crítica da razão negra", publicado em 2013, apenas três anos após a edição dos ensaios de “Sair da grande noite”, onde Mbembe já escrevera que “a dominação colonial era análoga a um estado de guerra. Em muitos casos, ela tomou a forma de uma guerra permanente de baixa intensidade.”[29]. Agravada pela política armamentista do atual governo – cujas decisões acerca do uso de armas pela população civil criou um exército de reserva para travar qualquer tipo de guerra, inclusive uma que seja necessária à sua sobrevivência no poder – a população negra e periférica, os povos indígenas, as mulheres, os homossexuais e as pessoas trans e travestis conhecem bem essa guerra, permanente e sustentada com a mesma naturalidade dos extermínios dos séculos passados. [30]
PARA CONCLUIR
Se este fosse um artigo voltado para discutir as dificuldades da esquerda de compreender as transformações produzidas por décadas de neoliberalismo e agravadas pela crise neoliberal deflagrada a partir de 2008/2009 com a derrocada do mercado financeiro global a partir dos EUA, a minha principal referência para o debate seria a dupla Edmilson Paraná e Gabriel Tupinambá. Ali, há uma positividade do processo de periferização, quando os autores escrevem que “ao mesmo tempo em que essa situação se alastra pelo globo, ela também desfaz a nossa capacidade de tomar os países ditos ‘desenvolvidos’ – ou mesmo a crítica do processo de expansão imperialista – como modelo do que fazer para ‘sair do atraso’. Na verdade, desfaz até mesmo a nossa capacidade de saber se ‘sair do atraso’ é, de fato, um bom critério de orientação política.”[31]. O trecho oferece pistas a respeito de qual não seria o melhor caminho a tomar: concentração em política econômica desenvolvimentista, tendo como referência os países do Norte global; manutenção da chave incluídos/excluídos, sendo a inclusão promovida pela via do consumo[32]; desprezo pela pauta ambiental, como já aconteceu na construção de Belo Monte, busca de empregos formais sem considerar as consequências laborais da fase atual do capitalismo de plataforma, aposta nos mecanismos tradicionais de representação política... a lista do que não fazer é longa. Em vez de persegui-la exaustivamente, pode ser um bom momento para retornar a Chantal Mouffe, em uma de suas propostas mais instigantes. Diante da paralisia das esquerdas, ela propõe um “populismo de esquerda”, conferindo conotação positiva ao termo populismo, outro modo de denominar uma política contra-hegemônica que se oponha à ordem neoliberal.[33] Em outras palavras, diante da derrocada econômica, a saída é pela política, aqui entendida como lugar de imaginação de futuros impossíveis. [34] Se não há horizonte revolucionário, isso não quer dizer que não haja alternativa à vida administrada em sua máxima escala.
O que vem depois do fascismo precisará vir acompanhado de um exercício de imaginação coletiva de outro horizonte de futuro, imaginação que parece ter sido fácil de minar em um cenário no qual o elogio à tortura não produziu indignação ou rejeição suficientes. Desde a eleição de 2018 tenho argumentado que o principal interesse do então candidato Jair Bolsonaro era uma disputa pela memória, movida por um ponto fundamental e ainda intocado no inconcluso processo de democratização do país: evitar a punição dos torturadores do regime militar, cujos 377 nomes foram elencados no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), a fim de recuperar o caráter heróico que os militares se atribuem no combate às forças de esquerda e na salvação do país. [35] Foi o que justificou a evocação de um torturador em seu voto na Câmara, que decidiu o golpe da presidente Dilma e impulsionou sua candidatura. Ali, a naturalização da violência marcou seu passo definitivo em direção ao fascismo como forma política ideal aos interesses neoliberais, representados pelas forças econômicas que vieram a se juntar ao candidato.
Se entendermos a política como o campo das ideias, então podemos supor que depois do fascismo ainda virá uma disputa pelo passado, cuja sustentação pode se dar em mais um projeto de conciliação nacional, sem que seja postas em xeque a origem e a natureza violenta da formação do Estado-nação brasileiro. Mesmo que seja apenas uma disputa por um passado imaginário – o que só pode se dar em termos de foraclusão dos efeitos da herança colonial –, a experiência da vida social brasileira mostra que uma história não elaborada é um dos sintomas de queainda estaremos obrigados a nos confrontar com as promessas de mudança radical acenadas pela extrema direita e ressonâncias em significativa parcela da população. Não será suficiente que forças de centro-esquerda recoloquem o país no velho trilho do gerenciamento da matriz incluídos/excluídos, na via econômica, e da conciliação na via política, modo de eliminar a ideia mesma de política.
Considero que o passado ainda está em disputa nesse fracasso crônico do país do futuro, enredado em uma história de violência colonial não superada, em atualização permanente em novas práticas de racismo e exploração. Do Atlântico negro, para repetir a expressão de Paul Giroy, herdamos morte e expropriação naturalizadas como forma de vida. As expressões contemporâneas do fascismo, o neocolonialismo e o neoliberalismo são três vértices de um tripé que sustenta a expansão da extrema-direita, cujo crescimento se dá no rastro da falsa promessa de transformações radicais ali mesmo onde as forças progressistas insistem – ou, pior, se conformam – em afirmar que não há alternativa.
Na minha hipótese, há alternativas em um giro para fora da ideia de progresso – seja o do desenvolvimento econômico, seja o do empreendedorismo neoliberal – o que passa tanto pela elaboração do passado quanto pela imaginação de outro tempo, não mais de uma promessa, mas um tempo-do-agora, um tempo de ruptura com a cronologia, esta que ainda sustenta a farsa do “país do futuro”. Aqui volto a Mbembe, agora com a proposta de declosão do mundo.
A ideia de declosão inclui a de eclosão, de surgimento, de advento de algo novo, de desabrochar. Declodir significa então retirar as cercas de modo que aquilo que estava enclausurado possa emergir e desabrochar. A questão da declosão do mundo (...) está no coração do pensamento anticolonialista e da noção de desconolonização. "No pensamento da descolonização, a humanidade não existe a priori. É preciso fazê-la surgir através do processo pelo qual o colonizado desperta para a consciência de si mesmo, apropria-se subjetivamente de seu eu, desmonta a cerca e se autoriza a falar em primeira pessoa.[36]
Acompanho de perto o argumento para com ele chegar, enfim, ao ponto que acredito nos tocar no Brasil de 2022. Só o que pode vir de realmente novo depois do fascismo é o fazer surgir de uma humanidade que, no caso brasileiro, também não é pré-existente. Enquanto sustentarmos uma noção restrita de humano não teremos superado o fascismo. Essa noção restrita de humano implica em refazer, em termos brasileiros, mas também latino-americanos, a crítica ao humanismo que tocou o pensamento europeu a partir da segunda metade do século XX, sabendo que hoje os termos dessa crítica são outros.
Não bastam os discursos de humanização – da polícia, do parto hospitalar, da vida universitária – enquanto ainda carregarmos o peso da herança colonial como prática cotidiana na vida social. Já não se trata apenas, como percebeu Aimée Césaire nos anos 1930, de nos espantarmos com a dimensão da barbárie. Já não basta fazer como Michel Foucault nos anos 1960 e afirmar que o homem é uma invenção recente cujos rastros serão apagados. Ou repetir o gesto de Jacques Derrida e apontar para os fins do homem, esse que nos interpela com a questão “mas quem, nós?”. Já não é mais suficiente a crítica pós-colonial de Gaiatry Spivak e sua pergunta “pode o subalterno falar?”. Assim como são insuficientes as proposições de Judith Butler, crítica à violência de Estado como única direção a uma democracia radical. Nem mesmo o conceito de necropolítica de Achille Mbembe nos atende, porque a aniquilação mortal a qual se refere nos constitui. Já passou da hora de denunciar a denegação do racismo com Abdias Nascimento, Milton Santos, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro e tantos mais.
Apenas no modo de uma razão cínica podemos continuar viajando sem rumo, vagando a esmo, ignorando o tamanho da destruição histórica a que temos sido submetidos. Nem reformas, nem grandes revoluções virão nos salvar. Com isso não quero apontar para um niilismo absoluto. Bem ao contrário. Quero concluir afirmando que justamente por estarmos diante dessa ausência total de horizonte seremos obrigadas a inventar, inventar e reinventar novos modos de habitar este país, esse continente e esse mundo. As grandes rodovias que nos cortam levam sempre ao mesmo lugar, já não é mais o caso de percorrê-las nem muito menos ampliá-las, virando mais uma vez as costas à urgência ambiental que nos ameaça. A essa imensa necessidade de mudança não será suficiente dizer que depois do fascismo seremos felizes de novo, nós que “nunca fomos tão felizes”. Só oportunismo ou ingenuidade – ou uma boa mistura dos dois – podem nos fazer acreditar que, derrotado nas urnas, teremos extirpado o fascismo da vida social brasileira. Não, não teremos, não sem antes perceber, denunciar e elaborar o fato histórico de que isso a que hoje chamamos de fascismo sempre esteve aí.