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DAVID-MÉNARD E O ANIMISMO

Bruno Belém

A vontade das coisas: o animismo e os objetos é um ponto de fuga e interseção de boa parte da reflexão de David-Ménard, mas também é seu trabalho mais atípico, pois nele vem se somar à articulação entre filosofia e psicanálise, que marca sua obra, uma incursão pela antropologia e a teoria política, o que confere ao livro seu caráter interlocutivo. No entanto, como acontece às questões mais pertinentes, é tanto sua provisoriedade quanto e consequentemente a recorrência delas que faz com que o maior interlocutor de um pensamento seja ele próprio, desde que não 

permaneça o mesmo. Há mais de quatro décadas de pesquisa, a autora tem procurado compreender o estatuto da incidência do social na constituição contígua de nossos modos de relação a si e ao outro, programa que, a cada publicação a partir de uma nova abordagem, tem apontado que a razão não pode se pronunciar sobre a realidade sem se haver com o problema do desejo. Em A vontade das coisas, essa questão é desenvolvida através da temática do animismo.


Quando Tylor propôs o conceito de animismo em 1871, ele buscava descrever o que seria a mais primitiva das religiosidades, compreendida como um sistema de crenças que atribui aos não-humanos o que chamamos de alma. Nesse sentido, o animismo seria um processo de encantamento do mundo, em contraste com nossas sociedades desencantadas. Apesar das incorreções dessa leitura, há um sentido no qual, de fato, a modernidade é um processo de desencantamento do mundo, tributário tanto do Renascimento quanto da Reforma, que ao longo de sucessivas dissensões, seja com a Igreja, seja com a magia, atravessa o Iluminismo e a Revolução Industrial até chegar, no século XIX, em um estágio consolidado de teorias e práticas nas quais, do ponto de vista  humano, o controle da natureza é o princípio organizador da atividade científica. No entanto, autores como Marx e Freud procuraram mostrar que a modernidade também é um processo de encantamento do mundo, à revelia de nossa autoimagem. David-Ménard vem se somar a eles, ao argumentar que nas sociedades modernas a propriedade pode ser compreendida como um animismo. Este, contudo, não se deixaria reconhecer prontamente, dada sua codificação pelo direito. Isso porque o direito, quando fala de propriedade, fala de relações entre indivíduos e coisas. Porém, como Hegel haveria compreendido, o que a propriedade coloca em relação com as coisas não são indivíduos, mas vontades. Por isso, a associação entre individualidade e propriedade é um mito das sociedades euro-americanas: não há vontade que seja individual, e nem poderia, pois a vontade é precisamente o que desindividualiza, porque sua exteriorização não é apenas um processo de diferenciação entre indivíduo e vontade, mas entre o indivíduo e ele mesmo. O que significa que nunca houve indivíduo, foi preciso inventá-lo – em um passe de mágica. Fazendo jus a Hegel, A vontade das coisas desloca o reconhecimento do âmbito de uma ciência da experiência da consciência para uma fenomenologia do espírito. É algo de um desconhecimento que se passa, já que, embora nossas sociedades se considerem desencantadas, porque racionais, há um animismo da propriedade que nos mostra que razão e magia não se opõem necessariamente. No direito, a racionalidade cumpre uma função essencialmente mágica, e não é menos racional por isso – magia não se opõe à racionalidade, até porque não é apesar, mas através dela, que fazemos mundos, prenhes de encantamento.


É isso que, por sua vez, Marx haveria compreendido sobre a criminalização da prática camponesa de recolher madeira. A doação de socialidade às coisas, que acontece quando determinamos sob quais condições elas vão circular, passa a condicionar nossas próprias determinações. Pois igualar o costume de coletar galhos mortos com um furto deliberado pressupõe que onde só havia o chão da floresta agora há bens patrimoniais, cuja tangibilidade é o índice de um reordenamento não apenas do que entendemos por coisas, mas também por pessoas: se uma sociedade se pergunta pelo valor econômico do que se desprende das árvores, não é, primeiro, porque tudo nela é mensurável economicamente, passível de proprietariedade, mas antes que o direito inventou um sujeito individual, o sujeito de direito, cuja pessoalidade individualizada, diz David-Ménard, unifica e homogeniza as coisas sob seu pertencimento. Na sua crítica da economia política, um dos aspectos do que Marx vai chamar de fetichismo da mercadoria consiste justamente no fato de que as relações sociais que as pessoas estabelecem na produção das coisas aparecem como determinações das coisas. Assim, o que um dia o pensamento europeu atribui aos povos “selvagens” como fetichista, os “civilizados” repetem, projetando a cultura na natureza ao ponto de as pessoas não se reconhecerem como produtoras do que produzem. No entanto, mais que relações imaginárias de pessoas com coisas e com pessoas, o fetichismo da mercadoria seria a experiência vivida de que, no capitalismo, as relações sociais só se dão através das coisas. Como é sabido, o que Marx chamou de comunismo objetivaria o desaparecimento dessa reificação, do desconhecimento do social sobre si mesmo – um ideal de transparência. Mas é aqui que se dá uma torção decisiva: contra um Marx idealista, incapaz de ver, no processo de circulação, além ou aquém do que efetivamente se passa nas relações de propriedade no capitalismo que não o arranjo de salvaguarda do quadro institucional burguês, David-Ménard reivindica a teoria do reconhecimento de um Hegel materialista que localiza essa questão fora da articulação entre Estado e sociedade civil, mesmo que provisoriamente. Um hegelianismo diferente daquele que se hegemonizou há décadas. Pois o que Hegel chama de reconhecimento não é, no movimento de impasses do desejo em relação à sua própria falta, apenas o que se desdobra em demandas reivindicativas de identidades a serem instanciadas pelas suas indexações institucionais na vida do espírito. Não é apenas inserção, mas exteriorização da vontade, que só ganha realidade, reconhecimento, ao ser materializada nas coisas. Com efeito, a exteriorização é também alienação, mas que deixa de ser exclusivamente negativizada, como na tese da reificação. Há algo nas pessoas que só pode ser reconhecido se coisificado. O que significa que as relações sociais nunca se dão entre sujeitos, mas entre sujeitos e objetos, mesmo e principalmente quando o sujeito também é um objeto e o objeto é um sujeito. Nesse sentido, um ideal de transparência ignora que não há sociedade sem essa opacidade que as coisas, especialmente em circulação, nos impõem, e que isso não diz respeito exclusivamente às leis de um Estado. Até porque, se não há Estado sem leis, o contrário não é verdadeiro. Por isso, no encalço da análise maussiana da dádiva e sua posteridade, David-Ménard vai se voltar para as sociedades não-modernas ditas sem Estado, ditas primitivas, nas quais a circulação das coisas e das pessoas também se dá sob a forma de alguma lei, e que apesar de diferentes das nossas também não são transparentes.


Segundo Mauss, nas sociedades ditas primitivas não há nada que se assemelhe a uma economia natural no processo de circulação de bens e riquezas. A troca não está satisfazendo um querer-ter, como acreditou Malinowski, ou se movendo por um sistema utilitarista de interesses. A posse é um dos momentos e o útil é um dos predicados do que circula – não a forma e razão dos ciclos, que é a reciprocidade. Sem essa diferenciação, o flanco está aberto aos pressupostos antropológicos subjacentes às tentativas de hobbesianização ou rousseaunização da dádiva, mas como bem pontua David-Ménard, a lógica da dádiva não é a lógica do contrato. O ponto aqui é que um pressuposto antropológico não é apenas a ideia de que haveria algo que caracterizaria universalmente o ser humano, sua natureza, que diz o que o ser humano é – como: sem o Estado só nos restaria a guerra generalizada; ou, ao contrário, que o ser humano é naturalmente bom, ao passo que o mal vem da sociedade –, mas que diz o que o ser humano é com outros seres humanos. Isso significa que o pressuposto não é apenas sobre a natureza, mas também sobre a cultura. Por isso, o tropo comum de que a mercadoria institui uma relação entre coisas e a dádiva entre pessoas é importante no livro, desautorizando o nivelamento contratualista. E, de fato, não faltariam exemplos de como mercadoria e dádiva são modalidades distintas de troca. Ambas são recursivas, põem em movimento sua perpetuação, mas com a diferença de que a mercadoria engendra a repetição das coisas e a dádiva a das pessoas, o que significa que na relação com a repetição a primeira repete a diferença para produzir o mesmo e a segunda repete o mesmo para produzir a diferença. Um movimento que em ambas consiste de certo incremento, que na mercadoria são quantidades que através das coisas são acumuladas pelas pessoas – o que, segundo Marx, pede a produção do mesmo, do mais-valor – e na dádiva são qualidades, significados, que através das pessoas são acumuladas pelas coisas – o que pede a feitura da diferença, do que poderia ser chamado de mais-significado. E também: a figura do consumidor da mercadoria e a figura do donatário da dádiva são, respectivamente, esvaziadas e plenas de pessoalidade, ou seja, de história – o que é irônico, já que, em certo sentido, nas ditas sociedades com história as coisas não têm história, sua circulação prescinde do saber sobre o circuito de pessoas que é condição de sua existência, e nas ditas sem história, ao contrário, as coisas têm história. E ainda: a mercadoria, para ser trocada, exige uma equivalência que a dádiva, por sua vez, não só dispensa como repele, e essa igualdade que a troca de mercadorias explicita no processo de circulação tem seu inverso simétrico na ocultação da desigualdade de valor no processo de produção. No entanto, não se trata de uma oposição em pólos fixos. Há inversões: embora a pessoalidade dos trabalhos concretos seja ocultada pelo trabalho abstrato na coisa mercadoria, enquanto na dádiva a pessoalidade das atividades é explicitada, a mercadoria também institui uma relação entre pessoas, mas apenas através da forma jurídica do sujeito de direito, e a dádiva também institui uma relação entre coisas, mas apenas através de certa autonomização da pessoalidade, que passa à coisidade ao doar algo da pessoa à coisa. Isso só é possível porque na dádiva a pessoalidade não diz respeito a indivíduos, mas coletividades.


No mais das vezes, a forma e razão da circulação, seja da mercadoria, seja da dádiva, é um pretexto cujo objetivo, indireto, é desconhecido de quem troca, mas que a troca faz acontecer. Para Lévi-Strauss, esse desconhecimento teria sido negligenciado por Mauss, que não escaparia do psicologismo que vê a troca como efeito de um querer. Seu erro seria localizá-la ao nível de segunda ordem, derivada da tríade dar, receber e retribuir. Antes, deveria ser compreendida não como um complexo de operações discretas, mas uma síntese dada à e pela simbolicidade. David-Ménard reconhece essa contribuição à compreensão de que a troca impõe o reconhecimento de uma outridade irredutível, não comportável pela correlação entre troca e autonomia. Afinal, se o simbólico é sempre social, a troca é uma lei que eu não me dei – e inescapável: não há ganho sem perda, gozo sem partilha. Acompanhando Godelier, porém, David-Ménard vai criticar que em Lévi-Strauss o estrutural é a única predicação legítima do que é social, argumentando que, como o psicológico, o estrutural não dá conta do “algo a mais” que os objetos concentram, que ultrapassam o que é da ordem volitiva ou simbólica, porque materializam não a representação, mas o que não se deixa referenciar de forma direta. Butler também tem uma crítica nesse sentido. O desenvolvimento pela antropologia estrutural do esquema saussuriano de dupla determinação entre significante e significado para um em que este é precedido e determinado por aquele, caracterizando o significante como o que tem valor simbólico vazio, é mobilizado por Lévi-Strauss na defesa de que a circulação exogâmica das mulheres, constrangida pela proibição do incesto, não faria delas objetos em um sentido que as desqualificaria como tais, pois estaria além de todo e qualquer valor intrínseco, todo e qualquer conteúdo. Acontece que o simbólico não só não impediria como organizaria essa desqualificação: a relação recíproca entre homens, diz Butler, agenciaria uma relação não recíproca entre homens e mulheres e uma não relação entre mulheres, ou seja, o significante vazio em nada perturbaria a totalidade pressuposta pelo conceito de estrutura. Ao contrário, Antígona é morta, na leitura de Butler, porque falou a partir de um lugar, de uma posicionalidade de parentesco, de sexualidade, que não foi inteligibilizada, reconhecida pelo simbólico, revelando que a estrutura seria, no fundo, uma falsa totalidade. Haveria uma anterioridade não-estrutural agenciando a coesão e a manutenção social, que David-Ménard entende que não pode ser compreendida nos termos de uma verdadeira totalidade – um pouco como se toda totalidade fosse falsa.


É por isso que os trabalhos de Strathern são centrais para A vontade das coisas, que  frequentemente se ocupam da insuficiência do conceito de totalidade, que nós, modernos, mobilizamos através do recurso à cultura como uma metáfora naturalista – e, por consequência, à natureza como uma metáfora culturalista –, especialmente diante dos não-modernos. Pois há um expediente que consiste em atribuir aos não-modernos uma partilha operacional de nossas próprias conceitualizações, que no caso das noções de natureza e cultura não é tanto uma desconsideração do que o controle humano produz a partir do que nos é dado, mas do que se concebe como dado. Como se, crentes que nossa divisão entre natureza e cultura refletisse uma “realidade” externa, deitássemos nossa régua da divisão entre natureza e cultura sobre a régua dos não-modernos e, dessa sobreposição, na qual o privilégio epistemológico seria convenientemente nosso, pudéssemos deduzir uma falsa cultura, que, no fundo, ainda pertenceria a uma verdadeira natureza. E parte do intuito de Strathern é mostrar que em alguns casos os não-modernos não têm sequer essa régua. Com efeito, para os nativos de Hagen, como também em parte para os povos das Terras Altas Ocidentais, não há nada comparável ao que nós conceituamos como uma relação entre natureza e cultura – sem natureza, sem cultura, são povos implicados em outras relacionalidades. Para nós, modernos, a cultura seria uma manifestação da natureza humana, aquilo que particulariza o gênero, um acréscimo à natureza animal que compartilharíamos com as demais espécies, diferença que funda uma oposição, assente na noção de “relação entre”, na qual uma relação é sempre consequência de uma utilidade. Para muitos não-modernos, porém, uma relação é consequência de outra relação. Com isso, não só o par natureza e cultura é colocado em questão, mas também o par indivíduo e sociedade, já que a pressuposição deste se segue respectivamente da daquele. As relações sociais são generificadas, por exemplo, não por conta do gênero atribuído às pessoas, mas do gênero atribuído às relações, ou mais precisamente, não há pessoas separadas de relações, indivíduo de sociedade, como se esta dominasse aquele a partir de uma condição compósita que se imporia sobre o que seria unitário. Nesse sentido, o conceito de gênero como construção social ainda é tributário da ideia de que a sociedade falseia, com a cultura, a verdadeira natureza do indivíduo. Logo, também a concepção de que toda circulação é uma troca é questionada, já que ela supõe uma intercambialidade intrínseca aos objetos da cultura, bem como a natureza como seu eixo de rotação. A troca de objetos, o movimento do que passa de uma pessoa à outra, no entanto, é um caso de circulação, mas não o único. Muitas vezes são os objetos que fazem as pessoas circularem, qualificando essas pessoas como objetos e esses objetos como lugares. Cabe notar a diferença disso para a antropologia estrutural, onde pessoas e objetos coincidem, mas sem a especificação de sua lugaridade, como na circulação de mulheres, o que faz da troca o único caso de circulação. Quando os objetos são também lugares, porém, há circulação sem troca. Para David-Ménard, a propriedade seria um dos casos em que isso acontece. Cabe notar, também, a diferença para Marx, onde a propriedade, quando privada, opaciza as coisas e produz um desconhecimento do social sobre si mesmo, como se a propriedade privada dessocializasse a sociedade – o que se liga diretamente a tese da reificação e às ilusões da pessoalidade individualizada.


De fato, em nossas sociedades há um nexo entre propriedade privada e a categoria de sujeito, tal como nós a compreendemos, fundamentada em uma substancialidade que entifica o indivíduo, cuja relação cruzada é duplamente animista. A propriedade privada institui um vínculo entre pessoa e coisa em que a captura jurídica desta é um processo no qual, por projeção antropomorfizante, mas não só por isso, a coisa é possuída de pessoalidade. E há um animismo inverso, em que a pessoa é possuída de coisidade – e mesmo aqui, quando, através da propriedade privada, a pessoa introjeta atributos coisais, o que poderia resultar em uma experiência de despessoalização pela abertura à alteridade coisal, o resultado também é a projeção: supomos a pessoa como uma coisa única, já que supomos que uma pessoa é única, ou seja, que é um indivíduo. No entanto, isso não faz que a propriedade privada dissocialize o social – e nisso ela não difere, por exemplo, da propriedade social de diversos povos. A propriedade, privada ou não, é um dos muitos modos de feitura do social. Bem entendido, a incursão do livro no debate antropológico sobre a circulação não tem por objetivo repetir esses povos, pois, como diz Descola, nossos problemas são diferentes dos deles. É por isso que, apesar das limitações do comparativismo, ele serve a David-Ménard para mostrar, de um lado, que também nas sociedades não-modernas há casos em que a propriedade, sem ser privada, suscita a dominação, como nos exemplos de generificação, e de outro, principalmente, que a opacidade é criadora. Das muitas coisas que os não-modernos nos ensinam, mas também as agruras da URSS, está que a propriedade não é só uma questão privada, à espera de sua organização política. Daí que a abolição da propriedade não deve ser um princípio político, pois ela é mais plástica e também mais monolítica do que em geral se supõe, mesmo se privada. Até porque, teoricamente considerada, a propriedade privada é uma forma legítima de organização da produção e da circulação de bens e serviços, e não um roubo – embora ela possa ser compreendida como condição de possibilidade de todo roubo, o que não é pouco. Antes, o mais provável é que ela seja, como diz David-Ménard, uma relação social que é pobre, mas não pela opacidade em si. É no caso a caso, portanto, que a opacidade obstrui ou contribui para, como David-Ménard também diz, a criação de um mundo humano. O que coloca a teoria da ação política no âmago das reflexões do livro. Apesar das muitas abordagens que David-Ménard propõe a isso, elas poderiam ser resumidas à pergunta: o que acontece, por exemplo, quando uma manifestação é capaz de transformar uma situação política, quando ela é politicamente eficaz? A resposta habitual é que a eficácia decorre da aplicação de mecanismos políticos que são eficazes, levando à circularidade de que a política se explica por ela mesma. E por habitual se alude não só o senso comum, mas algo encontrável em elaborações como a de Badiou, Safatle e Butler, como quem A vontade das coisas dialoga.


Dos três, Badiou é aquele em que David-Ménard menos se detém – mas talvez com quem tenha os desacordos mais elucidativos –, e é convocado, aqui e ali, quase sempre com certo desapontamento. Pois apesar de Badiou dissociar unidade e totalidade, de tematizar a multiplicidade de mundos, de sua atenção à heterogeneidade das práticas, suas particularidades procedimentais e seus condicionais de participação, de sua concepção não sintética de instanciação do pensar, da irredutibilidade da noção de Sujeito à figura do indivíduo, de dispor de uma teoria da incorporação política, de qualificar o local, em geral, como mais complexo do que o global – em suma, de um grande elenco de afinidades com A vontade das coisas –, para David-Ménard, Badiou é frequentemente equívoco, o que ganha a nota amarga de uma proeza. É pouco, por exemplo, que a verdade seja pós-acontecimental, fazendo que em Badiou, como em Marx, a crítica da ideação abstrata frequentemente se limite à historicização do pensamento. O problema está no pressuposto de que há verdade em política. Apesar de e justamente porque esta é concebida em seu caráter genérico, a verdade é tornada um procedimento, qualificando a política não só como equipada de um pensamento próprio, mas, em certo sentido, a própria política como da ordem do pensamento. Como corolário – que transpõe a imanência prática que Badiou vê nas ciências para o pensamento em geral, especialmente através de noções como hipótese, testabilidade, experimentação e consistência –, temos que o pensamento político só ganha a materialidade que dele se espera, como engajamento situado, através da função epistemológica atribuída à forma-organização. E apesar da reavaliação negativa de Badiou sobre a forma-partido, a pertinência desta parece continuar insidiosamente incólume, talvez porque sua crítica se restrinja ao paradigma representativo que culmina no partido-Estado. Em sentido amplo, este é um subcaso do uso da representação política como figuração da totalidade social, que na forma-organização faz retornar toda a mise-en-scène característica da forma-partido enquanto polo informacional de processos de análise e decisão, marcadamente programática, de inflexão estratégico-tática, voltada à atuação preparativo-favorecedora em práticas de consistenciação de uma ideia, como a do comunismo. Se de um lado isso tem afinidade com a desindividuação dos processos de síntese que interessam a David-Ménard, de outro promove o voluntarismo de uma teoria da incorporação na qual a relação entre subjetividade e política é a de parte e todo. O que significa que compor um pensamento político é facultado à observância de práticas disciplinadas de fidelidade, que hipostasiam as questões organizativas e, nesse particular, sucumbem ao tarefismo em que o intervalo entre a verdade e suas consequências é compreendido como uma demanda operacional. É aqui, sobretudo, que o sartreanismo de Badiou se deixa ver e a militância se torna uma categoria heroica de um movimento volitivo. Mesmo que Badiou reconheça que o novo não nasce do necessário, mas do contingente, isso não basta para que ele escape de certo messianismo. E aqui, em Badiou, mas também em Safatle, como em Marx, a emancipação aparece como uma possibilidade positiva inscrita dedutivamente nas condições com as assinaturas posicionais dos que nada mais têm a perder e que, por isso, podem vir a ser tudo. Em Safatle, porém, essa determinidade de caráter lógico, a passagem do nada ao tudo, não faz distinções estritas entre necessidade e contingência, o que pede uma figura na qual o suporte da processualidade seja singular, levando à problemática do corpo político.


David-Ménard compartilha da importância que Safatle e Butler atribuem ao corpo em política, mas com restrições. Uma de suas preocupações com a maneira que Safatle mobiliza a noção de corpo é que ela tende a desobrigar que se demonstre as determinações que são presumidas pela ancoragem do corpo na espontaneidade da presentificação, fazendo do corpo uma espécie de axioma. Isso se liga diretamente com as reservas de David-Ménard à articulação que Safatle faz de sua teoria dos afetos com a plasticidade que ele vê na forma-Estado. Em Safatle, o Estado se diz de várias maneiras, do modelo suicidário à ideia de estados pós-nacionais. Embora ele não reduza o Estado à figura instrumental de aparatagem, de mecanismos vivificados ao sabor dos interesses políticos – ciente de que, dado o acúmulo, centralização e verticalização de poder que lhe são característicos, o Estado tende a gerar enquadramentos prévios, de caráter disciplinar e abusivo, através e a despeito de seus depositários sociais –, para Safatle, segundo David-Ménard, sempre haveria uma dinâmica na qual certos afetos são solicitados por certos Estados e certos Estados são solicitados por certos afetos. Vários problemas se seguem disso, mas talvez o maior deles seja o pressuposto da correspondência um a um, seu hegelianismo. É que o movimento, a eficácia, não pode ser pensada, segundo o modelo de causalidade que David-Ménard, subscrevendo Althusser, atribui a Hegel, como um produto direto, integrativo, da astúcia resolutiva de uma contradição dita principal, uma determinação em última instância, cuja unidade, pensada em termos de totalidade, é originária e simples. Antes, é o caso de pensar a contradição sem certa força preditiva que às vezes é atribuída a ela, frustrando a projeção idealista de que a contradição é informativa no sentido de revelar as relações de correspondência um a um entre os pólos de um conflito. Pois não só as relações entre os elementos não são bijetivas como, além de serem injetivas e sobrejetivas, cada elemento é ele mesmo heterogêneo – daí porque Althusser lembra que as causas de uma revolução não raro e paradoxalmente são alheias ou mesmo opostas a ela. Uma contradição só é simples se abstrata, pois no momento em que passa à concretude deixa de ser simples, e é por essa orientação à simultaneidade que sua eficácia é específica, sua autonomia é relativa e nenhum acontecimento sozinho cria uma ruptura, mas alguns agravam, enfraquecem o ponto no qual ela vai ocorrer – seu lugar. Safatle consegue, com Hegel, ir além do aristotelismo e do espinosismo que privilegiam o conceito de potência, e todavia ele continua preso a uma faceta da reflexão sobre o movimento que talvez possa ser rastreada até o idealismo alemão compreendido como uma filosofia da existência, no sentido de que nesta haveria uma inescapabilidade do ato, o que também compromete Butler. David-Ménard concorda com Butler, que concorda com Arendt, que a polis não existe à maneira localizacionista que o Palácio de Inverno existe, mas é um espaço entre as pessoas, e portanto, nunca se fixa em um lugar, mas produz sua própria lugaridade – daí que a polis não se confunda com a cidade-Estado. No entanto, Butler vai argumentar que um espaço político é mais do que seu próprio aparecimento, porque seu suporte material, os corpos, têm eles mesmos uma existência política. É nisso que ela diverge de Arendt, para quem o pertencimento categorial dos corpos está relacionado ao oikos, esfera privada. Para Butler, tanto a materialidade das condições da política quanto a possibilidade dessa política reconfigurar essa materialidade dependem de uma corporeidade cuja existência extrapola essa esfera, pois há um agir em comum que pelo enacting dos corpos faz do “eu”, de você e de mim, também um “nós”. O erro de Butler, porém, é ainda se agarrar demasiadamente ao conceito de agência, porque a materialidade situada da política diz respeito ao inconsciente, ou seja, ao que em uma manifestação, por exemplo, escapa e excede ao controle das pessoas. Para que um acontecimento alcance uma dimensão política não basta a presentificação, a heterogeneidade, o ajuntamento e o enacting dos corpos, porque para ir além de si mesmo, para se tornar político, é preciso que o corpo esteja inserido em um sistema de coordenadas determinado pela implicação mútua entre dinâmicas de condensação e deslocamento de contradições. O que recoloca a pergunta: o que faz uma manifestação capaz de transformar uma situação política, de ser politicamente eficaz?


Para David-Ménard, o critério de eficácia de uma manifestação residiria, por exemplo, no que ela faz emergir na reação a ela. Um critério, portanto, que é material. Por isso, há tempos e até hoje, a exclusão social contra a qual uma manifestação se rebela não só agenciaria uma aliança de corpos heterogêneos, como também e sobretudo faria emergir a materialidade de uma reação que aparece como “desproporcional”. Em política, porém, não existe desproporcionalidade. Toda reação revela quais são as proporções de uma situação, cujas grandezas eram até então desconhecidas, inconscientes. A excludência de um Estado contra setores da população de seu território só é dimensionada adequadamente quando é requerida em sua existência concreta, ou seja, a mensuração do alcance político de uma manifestação é dada pelo que efetivamente se passa em um acontecimento, cujas determinações estão para além daquilo que seus agentes conjecturam e intencionam. Portanto, que um critério seja material não faz dele um fator manifesto. Ao contrário do que crê o oitocentismo de parte do materialismo corrente, a materialidade não é o campo da transparência, mas da opacidade. Quando diz que algo de inconsciente atua no corpo político, David-Ménard não está dizendo que o inconsciente ganha materialidade, se torna o que é, no corpo político. Ao contrário: o corpo político se torna o que é porque o inconsciente é material. Esse é o momento mais freudiano do livro, e certamente dos mais passíveis de uma leitura falha. Diversamente de algumas das tendências atuais, para David-Ménard não é o caso de fazer uma ontologia do corpo. Tampouco ela discorda de Safatle ou de Butler que existe uma ligação entre corpo e política, e que algo de inconsciente atua no corpo. O ponto é que não é o corpo que é inconsciente, mas a política. Um passo que não foi dado porque, até então, a noção de “corpo político” privilegiou mais o “corpo” do que o “político”. David-Ménard inverte essa ordem, mas sem retroceder até Badiou e à centralidade da produção de um saber, o que se deve a especificidade do materialismo de A vontade das coisas. Bem entendido, não se trata de um retorno ao fisicalismo de ocasião encontrado em algumas afirmações de Freud – como a de que um dia todas as nossas concepções sobre a psique viriam a ser organicamente alicerçadas –, mas antes de, também com Freud, recusar que o sujeito cartesiano saia incólume de Salpêtrière. Pois desde sua tese de doutorado, a obra de David-Ménard se debruça sobre como a psicanálise força os limites do dualismo ao afirmar que, em certo sentido, a res extensa também é cogitans, que o corpo pensa, que habita a linguagem e é carregado de teoria – folk, certamente, mas não por isso menos capaz de construir correlatos causais. Também por esse motivo, a psicanálise é refratária ao destino que o materialismo eliminativista reserva à maioria das psicoterapias, uma vez que recusa a dicotomia entre o subjetivo e o social, o interior e o exterior, um debate clássico que A vontade das coisas reabre. Em psicanálise, a relação entre sujeito e objeto não é a de uma apreensão perceptiva, na qual o sujeito é um polo de produção e articulação conceitual a partir de representações recognoscíveis, de um élan epistemológico. Na sua relação com o objeto, o sujeito não é só sujeito de conhecimento, não é só requisitado em sua logicidade, mas em seu desejo, o que significa que o desejado não é neutro: o objeto exerce uma causalidade, porque o que o Eu extrai de objetalidade em suas relações não é da ordem da objetividade.


David-Ménard está ciente das propensões antropológicas e filosóficas contemporâneas de revisão dos compromissos ontológicos excepcionalistas da posteridade kantiana e ampliação a extensão de conceitos atributivos como os que são mobilizados, por exemplo, pela concepção de animismo na qual a natureza é um subcaso multimodal de uma cultura ubíqua. No entanto, sua questão não é se as coisas são dotadas ou não de um anthropos endógeno, mas a possibilidade delas serem possuídas por nós – não apenas na acepção proprietarística de posse, mas de possessão, embora David-Ménard insista, justamente, nos limites dessa distinção, seja nas sociedades modernas, seja nas não. O que ela chama de vida social das coisas, portanto, diz respeito a nós, nossa doação de socialidade às coisas, de sentido, naquilo que essa instância nos ultrapassa, ou seja, que é inconsciente. Assim, a razão não pode se pronunciar sobre a realidade sem se haver com o problema do desejo não porque as coisas são em si mesmas libidinais, mas porque não há nada que seja próprio à libidinalidade, e é por isso que ela é capaz de se investir em tudo. No centro desse movimento, se encontra a vocação objetalizadora do desejo: os objetos libidinais não são dados, mas produzidos, o que pede um modelo de unidade no qual o objeto, não sendo apenas um duplo formal, representacional, no sujeito, da síntese do diverso, é animado por um princípio de ligação em que o diverso da experiência ganha objetalidade não apenas através da produção de um saber, mas de um não saber. Este é descrito por Freud como o que nos constitui através de uma expulsão para fora do Eu daquilo que tomamos por incompatível com as nossas identificações e expectativas de satisfação, reguladas por distinções estritas entre prazer e desprazer. Um estranhamento [Unheimlich] que é, para nós, uma experiência tríplice do que nos constitui (heimlich), que recalcamos (Un) e que retorna (Unheimlich). E ao retorno do que foi recalcado, Freud deu o nome de realidade [Wirklichkeit]. Assim, a psicanálise escapa tanto da dadidade objetal quanto liberta a objetalização de ser função exclusiva da pensabilidade. Não se trata, pois, das condições de acesso do sujeito ao objeto, mas do objeto ao sujeito. Com isso, a exterioridade deixa de ser a matéria inanimada que se oferece ao conhecimento e passa a ser compreendida como da ordem do desejo – um desejo próprio. É principalmente isso que, à sua maneira, remete ao animismo. Logo, uma formação coletiva, uma sociedade, não se opõe aos sujeitos individuais, já que estes não existem, mas às pulsões. O que não significa que não existam sujeitos singulares, mas que a singularidade nunca é individual, e por isso está sempre se lançando “para fora” do que parece ser individual, fazendo sociedade. Portanto, dizer que os objetos libidinais são produzidos é dizer que eles são sociais, ou mais precisamente, que é fazendo esses objetos que nós fazemos nossas sociedades. Cabe notar, porém, que é muito diferente dizer que o social é libidinal e que a materialidade é libidinal. Deleuze estava certo quando, na contramão de grande parte da posteridade freudiana, insistiu na socialidade do desejo, mas, do ponto de vista humano, haveria algo a mais que o desejo e o social, a saber, os objetos. Não que Deleuze não tenha pensado os objetos, já que o estatuto da virtualidade, da própria embriogênese da realidade, é a de um objeto parcial, e essa parcialidade do virtual leva aos acoplamentos e conexões da noção de máquina, toda ela atravessada pela questão da objetalidade. É que, como diz David-Ménard, os objetos das máquinas desejantes e os objetos das máquinas sociais não são os mesmos, o que escapa a Deleuze e torna vã sua distinção entre o desejo e o social, já que ele liga diretamente um ao outro. Daí também que, tal como às vezes é concebida, a desterritorialização seja só um conceito ruim de movimento, se por este se compreende que toda disjunção, dada sua dinâmica dispersante, é índice de devir, de transformação, fazendo da desterritorialização uma lei geral que pouco se distingue de uma determinidade de caráter lógico, como se o diverso por ele mesmo fosse capaz de produzir diferença. Assim como na passagem do tudo ao nada, faltaria a mediação, que se dá pelos objetos. O desejo não passa ao social, no qual ele se implica, sem transformar esse social. O social não passa ao desejo, no qual ele se implica, sem transformar esse desejo. Essa implicação mútua estabelece que o desejo não transforma o desejo e o social não transforma o social, mas um passa ao outro, e redefine esse outro, porque não são o mesmo. Por isso, o social não é pulsional, mas sua materialidade sim, que consiste dos objetos que transpõem a libidinalidade. Apesar de o conteúdo dessa transposição ser contingente, sua forma não é: há sempre um processo que deslibidiniza o libidinal, que faz a pulsão passar ao que não é pulsão, sacrificando o que é desejo no engendramento do que é social. E essa negação produz uma inversão: como diz David-Ménard, apesar de adorarmos a sujeira, de sonharmos com um gozo absoluto e odiarmos nossos semelhantes, nós construímos uma sociedade limpa, criamos instituições familiares e sexuais e edificamos modos de vida comum e compartilhada.


Assim, nós fazemos sociedades, gostemos delas ou não. E assim, o livro complexifica o que entendemos por política ao ponto de não a reconhecermos, e não serão poucas as pessoas que perguntarão – com razão, embora provavelmente não com uma boa – se ela ainda está ali. Nesse sentido, é possível dizer que A vontade das coisas é sobre muitas coisas, mas que talvez se resumam a duas. A primeira, que parece consciente a David-Ménard, leva à formulação de que o maior dos animismos reside não na atribuição do que chamamos de alma aos não-humanos, mas a nós mesmos, através da crença, que a propriedade privada subsidia, de que seríamos indivíduos, de que algo nos separa autoidenticamente dos outros. Nisso reside o rigor de David-Ménard no trato da questão do Eu. Se este é a matriz de toda equivocidade, não o é transcendentalmente, como um pecado original, mas antes tem lastro em nossas formas de vida. A segunda, porém, parece exceder aos personalismos da intencionalidade autoral, construindo um diagnóstico da obsolescência da política tal como a concebemos hoje. Por isso, apesar de estarmos diante de um livro cujos comprometimentos são, em suas próprias palavras, com a aposta do político, seu materialismo libidinal também diz de um além do que a retórica das lutas faz crer pelo belo termo emancipação.

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