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BOLSONARISMO: UM DEVIR FASCISTA DO PATRIARCADO?
Wanda Marques [1]

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As chagas da fome, do vírus e do fanatismo delirante, fulguraram o espetáculo da morte orquestrado pela miséria moral de um presidente paranoico. Para alguns um escândalo, para outros a consumação de um desejo latente. Muitos caracterizaram como um desvio de trajetória o atual quadro sócio-político brasileiro, julgaram que a situação na qual hoje nos encontramos fora um desdobramento nefasto de nossa história. Avaliaram que sofremos um golpe urdido pelo revanchismo político de uma oligarquia curvada ao mercado e ao capital externo, a qual pode contar com uma operação midiática que montou cuidadosamente o roteiro da novela da corrupção: construiu, por um lado, a imagem idealizada de um juiz herói, por outro, vilanizou a identidade da maior liderança política do país. Em larga medida, essa apuração é válida, senão por considerar Bolsonaro como um desvio, quando, com efeito, a sua chegada à presidência é a atualização de uma variável basilar de nossa história: o autoritarismo patriarcal.


O programa fascista de Bolsonaro não é um disparate alheio à construção da estrutura social do nosso país. Houve no Brasil um movimento fascista que foi idealizado por intelectuais conservadores o qual aglutinou os estratos médios da sociedade e mobilizou as massas, Ação Integralista Brasileira. A saber, o bordão “Deus, Pátria e Família” utilizado com frequência por Bolsonaro pertence à doutrina integralista. Muitos pensadores e intelectuais, aturdidos com a ascensão de um tipo fascista à presidência da República, se mobilizaram na intenção de compreender esse fenômeno. Portanto, não devemos ingenuamente enveredar pela crença de que a nação fora acometida por um “eclipse da razão” e que agora estaria recobrando o discernimento. A cada dia fica mais evidente que a derrota de Bolsonaro nas urnas não implicará o fim do bolsonarismo, em outras palavras, o país não voltará ao que era antes.


Por algum tempo nós chegamos a acreditar que, em vista do notório declínio da autoridade paterna, as democracias contemporâneas seguiam rumo à erradicação do autoritarismo e da praga fascista, pois, embora existissem líderes na sociedade atual, supúnhamos que um único indivíduo não seria mais capaz de encarnar a potência unificadora do grande pai de uma nação. Entretanto, a fragilidade da autoridade paterna nas sociedades democráticas contemporâneas pode ser compreendida por uma outra perspectiva, como adverte Vladimir Safatle em O circuito dos afetos ao observar que em “uma era de declínio da autoridade paterna, as figuras sociais de autoridade não desaparecem. Antes elas devem ser capazes de se sustentar a partir da internalização de uma situação de crise de legitimidade na qual regras e leis não são mais levadas a sério.” Nesse sentido, o fascismo poderia ser entendido como “uma lógica autoritária que assombra as sociedades de democracia liberal, constituindo algo como a latência de nossa democracia”.[2]


Identificar as estruturas autoritárias que operam no interior do capitalismo afasta a ideia de que o fascismo seria uma forma política da extrema direita circunscrita a sua caracterização clássica. Para Safatle, “o líder fascista se constituiria a partir da imagem arcaica de um pai primevo que não se submete aos imperativos de repressão do desejo, conseguindo mobilizar uma revolta contra a civilização e sua lógica de socialização”.[3] Isto nos permite compreender o autoritarismo como uma forma de organização social que transita do patriarcado ao fascismo, atualizando suas práticas políticas de acordo com as disposições subjetivas de cada sociedade.


O PATRIARCADO BRASILEIRO

Na intenção de dar visibilidade ao visível, iniciaremos a inspeção do solo absoluto deste país, repositório dos estratos das forças que colidem, se somam e se cruzam em nossa sociedade. O primeiro estrato que exige visibilidade é que a organização social e política do Brasil foi fundada sobre os alicerces da família patriarcal. Em Casa Grande & Senzala, Gilberto Freyre apresenta a descrição clássica da colonização portuguesa no Brasil, a qual se define “pelo domínio quase exclusivo da família rural ou semi-rural”. Embora revisões da noção de família patriarcal como representação dominante do período colonial brasileiro venham sendo feitas, tomaremos aqui a caracterização clássica como ponto de partida para pensar como esse modelo de família, centrado na autoridade paterna, projetou a sua ressonância nos diversos estratos da organização social brasileira. Segundo Freyre:


“A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador no Brasil, a unidade produtiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos, bois, ferramentas, a força social que se desdobra em política, constituindo-se na aristocracia colonial mais poderosa da América. Sobre ela o rei de Portugal quase que reina sem governar. Os senados de Câmara, expressões desse familismo político, cedo limitam o poder do rei e mais tarde do próprio imperialismo ou, antes, parasitismo econômico, que procura estender do reino às colônias os seus tentáculos absorventes.”[4]


Dado a persistência do caráter agrícola em nosso país, este legado ainda vigora difundido por meio de um padrão comportamental que reverbera em todos os estratos sociais, em maior ou menor intensidade. O poder patriarcal brasileiro, fundado na economia fundiária, organizava as oligarquias e servia de modelo normativo para nossa sociedade incipiente. Ainda que o regime de Capitanias hereditárias tenha fracassado e sido substituído por um modelo administrativo centralizado na pessoa do Governador Geral, o qual representava os interesses do rei de Portugal em terras brasileiras, todas as dificuldades e responsabilidades que envolviam a organização do espaço colonial favoreceram o fortalecimento das famílias locais.


Não obstante, a ordem patriarcal foi sobrecodificada pela centralização burocrática aos moldes do Estado Moderno com a chegada da corte portuguesa, e a acomodação da polarização servil que vigorava até então se fragmentou em diferentes estratos devido às novas demandas administravas de burocratização do país pela coroa, modificando o sistema de reprodução do poder senhoril e criando outras formas de subordinação. Gilberto Freyre em Sobrados e Mucambos nos dá a ver de soslaio essa tensão: “a simples presença do monarca em terra tão antimonárquica nas suas tendencias para autonomias regionais e até feudais, veio modificar a fisionomia da sociedade colonial”.[5]


Mesmo assim, era o poder patriarcal que sustentava as bases da monarquia onde, no topo da organização política e administrativa situava-se o rei. Em vista disso, um modelo de sociedade centrado na autoridade paterna regulou tanto as relações do Estado quanto os múltiplos segmentos do poder patriarcal que se difundiram nas relações sociais.  Nesse sentido, a disposição hierárquica era simultaneamente centralizada e segmentaria, pois, ao mesmo tempo que o poder régio cerceava o arbítrio das oligarquias familiares, era também limitado por elas, à medida que tolerava o exercício local de seus poderes.


Contudo, agora voltemos a atenção para os dias atuais. É notável que, ainda hoje, possamos identificar em muitos segmentos agrícolas do país a mesma mentalidade do patriarcado dos colonizadores portugueses: conquistar o território, explorar, exterminar os povos originários, dominar e povoar. No governo Bolsonaro com as grades de proteção das leis postas em suspensão, o novo front agrícola escancarou sem pudor práticas arcaicas de apropriação de terras, submissão e massacre de aldeias indígenas. Estamos assistimos à recolonização do território, não mais por colonizadores europeus, mas por migrantes que deixaram a região Sul para “conquistar” as regiões ainda “selvagens” do nosso país.


Para Milton Santos, “são os novos fronts, que nascem tecnificados, cientificizados, informacionalizados. Eles encarnam uma situação: a da difusão de inovações em meio ao “vazio”.[6] Não obstante, seria leviano afirmar que toda a região de modernização agrícola caracterizada pela produção de commodities a qual se convencionou chamar de front, que abrange o Centro-oeste, se valha de meios espúrios tal qual fora dito acima. Entretanto, não se pode negar que a violência e o descalabro ambiental vêm se dando, em larga medida, nessa região. É relevante dizer que o agronegócio, em especial no Mato Grosso, está intrinsicamente vinculado à formação regional de uma nova oligarquia. Nesse sentido, o espírito “pioneiro” de expandir as fronteiras em direção à mata, criar “vazios” e incorporar novas áreas está diretamente relacionado à consolidação da nova oligarquia do agronegócio.


E, à revelia da brutal devastação ambiental e do conflito existente onde se localiza o arco do desmatamento, paradoxalmente, o Centro-Oeste foi uma das regiões onde Bolsonaro adquiriu mais votos no país, 60,21%, perdendo apenas para a região Sul, a qual obteve 69,67% dos votos válidos. Não por acaso, no concerne ao voto do eleitor, ambas têm com perfil conservador.  A preferência por Bolsonaro em regiões aparentemente tão distintas não foi um disparate, visto que os sulistas foram os responsáveis por alavancar a produção agrícola no front do Centro-oeste e se estabeleceram como uma oligarquia. São eles os responsáveis pela criação de muitas cidades, com isso ocupam o topo das hierarquias locais, dispondo de poder econômico e político, impactando diretamente nas decisões de voto dos indivíduos em cada zona eleitoral. Essa micropolítica capilarizada se irradia constituindo as bases de influência nas relações com o Estado, se assemelhando ao padrão patriarcal de exercício local de poderes recorrente na história do nosso país.


A FORMAÇÃO DO ESTRATO INTERMEDIÁRIO DA SOCIEDADE BRASILEIRA

Outro aspecto importante diz respeito à formação do estrato intermediário da sociedade brasileira. Em decorrência da modernização institucional exigida pela coroa, um pequeno contingente de mestiços livres passou a suprir as novas necessidades funcionais de administração urbana, contribuindo para o desenvolvimento de uma camada social intermediária, até então incipiente. Aqueles que eram educados e possuíam bacharelado, tinham a oportunidade de ascender socialmente em cargos burocráticos especializados do Estado. Se por um lado mestiços de cultura superior gozavam de um certo prestígio social, aqueles que exerciam funções mais técnicas e artesanais consequentemente eram menos valorizados. Conquanto o lento crescimento urbano incorporava pouco a pouco o mestiço qualificado, os demais pardos e negros livres eram postos à margem e alijados da nova economia urbana.


Adiante, com o fim do tráfico de escravos, com a lei do ventre livre, a expansão da lavoura cafeeira e a incorporação do trabalho assalariado dos imigrantes europeus, o capital advindo da produção de café em São Paulo em meados da década de 1880 impulsionou o desenvolvimento industrial no estado, liberando novos fluxos de desestratificação social. Esses sismos provocaram deslocamentos na superfície instável sobre a qual havia se desenvolvido o estrato social intermediário, desencadeando ondas de choque que vieram explodir em distintos segmentos com a modernização urbana das décadas subsequentes durante da república das oligarquias.


Na cidade, os mestiços educados da pregressa classe média que gozavam de certas vantagens em relação aos demais mestiços e negros não qualificados, com a chegada dos imigrantes europeus viram-se ameaçados pela concorrência. Na lavoura, os mestiços e os negros que procuravam ocupação nas terras paulistas, devido à exaustão das condições agrárias do nordeste, eram preteridos pela mão de obra branca. A raça foi utilizada como categoria classificatória da sociedade, validando de um acordo tácito entre os detentores do poder de que a população não-branca ocupasse os estratos inferiores da sociedade, o que facilitou a ascensão econômica dos imigrantes europeus. Em vista disso, a estratificação social medida pela distinção entre as raças ao invés de regredir, se fortaleceu após terminado o domínio da Coroa.


Esse contexto contribuiu para que esses brasileiros que foram preteridos alimentassem um ressentimento contra os imigrantes, os quais, por sua vez, nutriam sentimentos racistas em relação aos mestiços e pretos. Essa conjuntura fomentou a hostilidade em duas frentes: uma concorrência interna impediu que aflorasse um sentimento de solidariedade entre mestiços e negros, bem como a vantagem concedida aos brancos acirrou a animosidade entre os brasileiros e os estrangeiros. Cada vez mais distantes do epicentro da disputa, os negros foram alijados de qualquer participação social, lançados para a borda do mapa, para a periferia. Foi precisamente nessa conjuntura que começou a se esboçar os elementos que sobrevêm o sentimento fascista que ganhou corpo no estrato intermediário da sociedade na década de 1930.


A ESTÉTICA NACIONALISTA DOS CONSERVADORES

Nessa época, uma questão fundamental que se impôs foi a necessidade estética de um novo nacionalismo. A modernidade se estabeleceu em nosso solo e passou a exigir um futuro que não poderia mais arremedar seu passado. Uma série de variáveis convergiram apontando para o ano de 1922 como marco do esgotamento de uma certa concepção de país. Além da Semana da Arte Moderna houve a fundação do PCB, a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, o início do movimento tenentista que culminou na Coluna Prestes, além de outros tantos acontecimentos políticos marcantes que indicavam a insatisfação com o regime oligárquico, a exaustão da “política dos governadores” e o “coronelismo”.  Esses eventos apresentavam a necessidade de pensar um novo Brasil, que acompanhasse a modernização, as transformações sociais, políticas e culturais em perspectiva nacional.


Diante desse imperativo, os intelectuais da época abraçaram a demanda de refletir sobre o Brasil, de pesar quais eram os valores comuns que inspiravam e uniam a nação. Pensar um nacionalismo para além do sentimento antilusitano que uniu o país em torno do ideal republicano do século XIX. Pois as contestações e as demandas sociais do Brasil moderno eram absolutamente distintas e diversas correntes ideológicas encontravam-se em disputa. A exemplo disso, em um contexto estético, poderíamos citar intelectuais com valores e concepções diversas sobre o país, como Oswald de Andrade e Plínio Salgado. Embora tenham participado da Semana da Arte Moderna de 1922, ficou a cargo do tempo revelar o quanto eram figuras com percepções e ideais marcadamente distintos sobre o advento da modernidade no Brasil.


Nesse tempo, São Paulo despontava como o espetáculo multifacetado da modernidade, com suas idiossincrasias e desenganos quão bem expressa por Mário de Andrade em seus versos de Paulicéia desvariada. O Manifesto da Poesia Pau-Brasil de Oswald de Andrade publicado em 1924, nativista e cosmopolita, irrompe como elemento de divergência ideológica com projeto em curso pela corrente nacionalista patriota e ufanista dos verde-amarelos composta por Plínio Salgado, Menotti Del Picchia e Cassiano Ricardo. Daí a importância em sublinhar que o movimento modernista não fora um bloco monolítico, visto que havia rivalidade e disputa entre as duas correntes por uma estética nacional, distintas e divergentes ao ponto de o futuro movimento antropofagista se tornar a epítome de aversão do movimento verde-amarelo.


À vista disso, não podemos insistir no erro de prescindir que tanto os intelectuais vinculados à vanguarda antropofágica quanto os verde-amarelos se incumbiram da tarefa de repensar a nação e de buscar as características do povo brasileiro, contudo com perspectivas bastante distintas, entre as quais uma divergência fundamental era que enquanto para o primeiro movimento o influxo estrangeiro deveria ser deglutido, para o segundo era necessário romper com a herança cultural europeizante. Por isso é necessário reforçar que houve duas correntes modernistas no Brasil. A vertente antropofágica se sobressaiu, fazendo prevalecer a sua concepção no campo artístico e cultural, frutificando no tropicalismo e povoando até hoje o imaginário estético nacional, a outra, verde-amarela, se capilarizou à sombra, de maneira subjacente e convergiu para a política instaurando uma estética moral fundamental para compreensão de como se formou o pensamento nacionalista de cunho autoritário.


Como conhecemos bem o antropofagismo oswaldiano, vamos dar visibilidade ao modernismo conservador de Plínio Salgado. Paulista, nascido em São Bento do Sapucaí, em 1895, teve o seu primeiro romance publicado no ano de 1926, O Estrangeiro foi bem aceito e se esgotou em menos de um mês. Embora as escolhas estéticas e ideológicas de Salgado o tenham colocado à margem da história artística e literária brasileira, isto não condiz com a real disputa que estava em jogo na construção da imagem do Brasil moderno na época. A concepção de nação de Plínio se disseminou por segmentações finas de grande capilaridade e contribuiu muito para a consolidação da nova estética conservadora nacional.


No decorrer do livro O Estrangeiro, expressa sua perspectiva sobre a história do Brasil, deixando claro o que censura e o que exalta através da caracterização moral de seus personagens. Reprovava como os estrangeiros que chegavam ao país sem posses conseguiam prosperar, comprar terras e tomar parte na política, enquanto o povo brasileiro declinava cada vez mais carente e degradado. Salgado, via com positividade a mestiçagem e idealizou na figura do caboclo o exemplar do verdadeiro homem nacional, em sentido físico, espiritual e moral. A ressonância desse discurso alcançou os mestiços ressentidos com as oportunidades concedidas aos brancos europeus. Há também uma clara oposição entre campo e cidade, com traços evidentemente românticos onde o campo representa a pureza ancestral e bucólica, com a valorização do arcaísmo pastoril em contraste à agitação estéril da cidade, onde as multidões eram marcadas pelo tempo acelerado da velocidade das máquinas.


A essa altura, a pergunta que se formula é seguinte: como um modernismo pode ser conservador? Uma possível resposta: A modernização no Brasil se deu a partir da implantação súbita do progresso técnico dos países do centro no interior de uma sociedade agrária e periférica, onde a organização arcaica não havia sido superada. Deste modo, o arcaico e o moderno passaram a coexistir por meio de um desenvolvimento desigual e combinado. Considerando essa conjuntura em perspectiva, o modernismo conservador de Plínio Salgado ao invés de um contrassenso, em certa medida, estava mais alinhado à realidade concreta do país do que a auspiciosa estética modernista antropofágica.


Nem a modernização da era Vargas, os “cinquenta anos em cinco” de Kubitschek, nem os subsequentes projetos progressistas foram capazes "queimar etapas” e liquidar o descompasso temporal entre o moderno e arcaico tão almejado . O arcaísmo pulsa na sociedade brasileira, ora na superfície ora latente, pois aqui a modernização se deu combinada com o seu atraso. Nesse sentido, o modernismo conservador de Plínio Salgado poderia ser entendido como um sintoma de nossa realidade social.


AÇÃO INTEGRALISTA BRASILEIRA: UMA DOUTRINA FASCISTA

O antagonismo afetivo entre o moderno e o arcaico é também uma característica do típica do fascismo, geralmente expressa pela apologia ao campo e a maledicência da cidade. Esse tipo de discurso aparece com traços muito semelhantes em Mein Kampf de Hitler, vejamos um trecho citado por Reich: “A possibilidade de se pensar uma classe camponesa saudável como a base para toda uma nação nunca será suficientemente valorizada. Muitos de nossos sofrimentos atuais são apenas consequências de uma relação pouco saudável entre a população urbana e a população rural”.[7] Do mesmo modo, para a Ação Integralista Brasileira, a cidade não poderia servir de referência para sua doutrina, visto que eram em grandes metrópoles como São Paulo que estavam sendo travadas as batalhas entre materialismo e espiritualismo.


Foi em meio ao alarido da revolução de 1930 que Plínio Salgado fundou em 1932 a Ação Integralista Brasileira. Vieram somar ao movimento outros dois intelectuais que foram de grande importância para a concepção do integralismo, são eles, Gustavo Barroso e Miguel Reale. Ambos partilhavam da obstinação de fazer uma revolução espiritual nacional que incluísse todos os brasileiros em uma finalidade moral superior a fim de fundar uma nova civilização. Devido à repercussão das ideias do evolucionismo cultural, do darwinismo social e da eugenia, a questão racial adquiriu relevância basilar nos projetos de progresso do país. Entretanto, havia divergência entre os membros do movimento quanto ao meio mais adequado para aprimorar e formar a raça brasileira.


Dentro da AIB havia duas correntes, uma delas, mais alinhada com o viés darwinista,  considerava que a mistura entre as três raças – o branco, o índio e o negro, comprometia o rumo do país à civilização. Por essa perspectiva, a participação do negro era a que apresentava maiores problemas, já que era julgado inferior em sentido intelectual, moral e espiritual por ter vindo e vivido na condição de escravo. Em contrapartida, a outra corrente, que assimilava algumas das ideias do evolucionismo, via a miscigenação por uma perspectiva mais positiva e otimista. No que tange aos povos indígenas, a resistência à sua integração era menor, pois o imaginário brasileiro tinha como contraponto à barbárie antropofágica de certos povos, o indígena catequisado pelas missões católicas, em especial a jesuítica. Nesse sentido, era como se só faltasse a esses povos a conversão à fé cristã. No pensamento de Plínio Salgado, o índio ocupa o lugar da integração dos elementos que compõem a brasilidade, por simbolizar aquilo que é genuinamente nacional. Haja vista a saudação Anauê empregada pelos integralistas, vocábulo tupi que poderia ser traduzido como “você é meu irmão”.


Todavia, entre os membros do Integralismo não havia um acordo em relação a valorização dos aspectos do povo brasileiro, entendido como a fusão das três raças, visto que a miscigenação despertava temor, pois os cientistas europeus haviam desenvolvido teorias sobre inferioridade das raças não brancas. Gustavo Barroso fazia parte dos intelectuais que viam a miscigenação com temor, pois para ele a sociedade brasileira devido ao cruzamento de raças se encontrava degenerada moralmente, intelectualmente e espiritualmente. Seus textos refletiam essa posição como nos mostra a passagem a seguir retirada de uma publicação feita na revista Fon Fon do Rio de Janeiro no ano de 1916 assinada como Jotaenne, iniciais de seu pseudônimo João do Norte.


“Jubilo estudante seria meu, quando visse uma nova, e brilhante, e membruda raça brasileira, de cruzamento util e digno, caracterizando-se no aspecto varonil, na cor, na altura, confiante na solidez de seu arcabouço e no offencivo poder de sua murraça, fazendo esquecer a mestiçagem fracalhona, e banal, e estúpida, que desde a menenice, eu tristemente contemplo e cuja a degenerescencia durante trinta annos tenho melancolicamente acompanhado.”[8]


É intrigante como essa divergência no interior do integralismo possibilitou que seguimentos da sociedade com interesses opostos fossem abarcados no interior do mesmo movimento. A voz de Plínio falava aos mestiços, a de Barroso, aos brancos. Deste modo, o discurso reverberava de forma ambivalente sobre as massas incorporando suas contradições.


Gustavo Barroso nasceu em Fortaleza no Ceará no ano de 1888, era filho de pai brasileiro e mãe alemã. Formou-se em direito e foi deputado federal pelo mesmo estado, também era jornalista, escritor e folclorista. Depois que se mudou para o Rio de Janeiro, pouco a pouco conquistou a posição de intelectual renomado. Foi o primeiro diretor do Museu Histórico Nacional em 1922, cargo que ocupou quase ininterruptamente até 1957. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras no ano de 1923, cadeira que o fez “imortal”. Esta breve passagem biográfica tem por objetivo sublinhar que Gustavo Barroso não era uma figura menosprezável no panorama da época, ao contrário, era um intelectual de prestígio.


Contudo, a personalidade de Barroso era paradoxal, sua erudição e sensibilidade para artes eram atravessadas por um caráter truculento e paranoico que se tornou saliente anos mais tarde quando assumiu a chefia nacional das milicias da AIB. No comando das bases integralistas, o contato direto com os paramilitares e as massas facilitou a difusão de suas ideias de eugenia e de antissemitismo, em muitos aspectos consonantes com as ideias de Hitler.  Barroso também fez vários adeptos para além dos núcleos integralistas por meio de suas publicações, tal qual seu livro Colônia de Banqueiros de 1934, onde responsabiliza uma conspiração judaico-maçônica pelo endividamento externo do país.


Os semitas seriam os responsáveis pelas mazelas da economia brasileira e combatê-los era a chave que livraria a nação a um só golpe do domínio dos maçons, da servidão liberal capitalista e da submissão comunista. O povo judeu era o elo de intersecção de uma teoria conspiratória disparatada que colocava em um mesmo horizonte capitalistas e comunistas. Nesse sentido, os semitas estariam por trás de todas as ideologias materialistas e somente uma “Revolução Integralista” ancorada no espiritualismo cristão poderia salvar a pátria. Embora Plínio Salgado e Miguel Reale não fizessem do antissemitismo suas bandeiras, não se opunham à posição de Barroso.


Outro fator sobremodo relevante é o resgate da conduta moral medieval divinizando a eterna luta espiritual da luz contra as trevas. A idealização da Idade Média remete à valorização dos critérios morais e políticos dos tempos em que reinavam valores cristãos, um modelo de referência de ordem social que situa este período como a “idade de ouro” da humanidade.  É comum em todos os fascismos a romantização da Idade média, a exaltação da terra, da agricultura e do campesinato. Tanto que Reich ressalta que uma das primeiras medidas de Hitler depois da tomada de poder foi assegurar o “profundo entrelaçamento da ligação familiar e o modo de produção rural” através do decreto “A Nova Ordem da Propriedade Agrícola, de 12 de maio de 1933, o qual retoma códigos legais antiquíssimos, partindo da unidade indissolúvel do sangue e da terra”.[9]


Miguel Reale também buscou refúgio nos idos medievais em Formação da Política Burguesa. Neste livro ele parte de uma breve análise do Império Romano a fim de rastrear os elementos residuais da desagregação dessa civilização que ao se mesclarem à ordem bárbara e ao cristianismo resultaram na organização social da Idade Média. Reale atribui à Igreja cristã o mérito de converter os chefes bárbaros e construir uma unidade religiosa que respeitava a economia patriarcal e a autarquia dos feudos. Ademais, censurava a altivez burguesa que exaltava a onipotência da razão em lugar da fé, desprezando as tradições.


É importante sublinhar que foi no pensamento de Miguel Reale que as concepções fascistas do integralismo ganharam um corpo teórico sistematizado. Devido a sua ascendência ser quase totalmente italiana foi educado no colégio Dante Alighieri que, além de ensinar a cultura italiana aos seus educandos, na época também propalava a ideologia fascista, Reale graduou-se pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e se tornou um jurista reconhecido com diversas obras publicadas. Em seu livro, Estado Moderno, concebeu o projeto de Estado do integralismo, tendo como referência o modelo de Estado Corporativo do fascismo italiano.


O Estado Integralista tinha por objetivo dar conta da diversidade de demandas da nação por meio de uma hierarquia de colaboração entre as classes mediada pelo corporativismo. Em vista disso, propõe uma concepção de liberdade que combina a atuação pública com expressão dos interesses individuais por meio de uma microgestão de grupos de profissionais organizados em sindicatos de patrões e empregados. Reale acreditava resolutamente na diferença entre as capacidades individuais, para ele a doutrina liberal fundada sobre a ideia de igualdade natural entre os homens dotados de razão é uma abstração que não condiz com a realidade. Deste modo, seu modelo corporativo preservava a hierarquia entre as classes ao mesmo tempo que não sobrepujava as liberdades e qualidades individuais. Tal organização do Estado seria respaldada por um sistema coerção jurídica segundo um princípio unificador de controle social de todos os estratos da sociedade.


Embora o projeto de Estado Integralista de Miguel Reale nunca tenha sido efetivado, nos fica a indagação de como programas de governo semelhantes vigoraram com a adesão das massas na Itália e na Alemanha. Wilhelm Reich em Psicologia de Massas do Fascismo, explica que tal estrutura se sustenta pela “identificação com a autoridade, com a empresa, com o Estado ou com a nação” que se estende do topo da hierarquia até as bases, onde o indivíduo por projeção começa a confundir-se com o Estado, a autoridade, a empresa e a nação. “O empregado ou o funcionário público começa por desejar a assemelhar-se com o superior, até que gradualmente a dependência material acaba transformando toda a sua pessoa, de acordo com a classe dominante”.  Isto ocorre devido à reprodução da organização patriarcal em todos os estratos sociais. “O auge dessa escalada é constituído pela ideologia da “honra nacional”, que é o cerne irracional do nacionalismo”.[10]


O ESPÓLIO INTEGRALISTA

É relevante destacar que Ação Integralista Brasileira foi o primeiro partido de massas do país, um fenômeno de mobilização nacional jamais visto, de proporções excepcionais. O uniforme integralista foi criado em 1934 para a padronização de seus militantes: a vestimenta superior era camisa verde, o distintivo com letra Sigma em maiúsculo sobre o mapa do Brasil em azul, gorro verde e gravata preta; a vestimenta inferior deveria ser preferencialmente de cor preta, isto inclui calças, cintos e sapatos. O integralismo envolveu sua militância em rituais de toda ordem, os quais foram protocolados em vinte capítulos por Plínio Salgado no ano de 1937, a fim de criar uniformidade, internalizar as referências simbólicas do movimento entre seus adeptos e construir uma identidade de grupo que envolvia desde rituais de iniciação, união matrimonial, batismo, até cerimônias funerárias.


Embora o integralismo não tenha chegado ao poder de fato, a ideologia de sua doutrina se consolidou no interior das bases do pensamento conservador nacional de maneira impactante, reverberando como base de apoio para golpes subsequentes como o Estado Novo e a ditadura militar. A saber, havia uma aproximação bastante estreita entre o Integralismo e as Forças Armadas, mais especificamente com os membros de patentes militares do Exército e da Marinha. O mais notório deles foi o Capitão Olímpio Mourão Filho, o qual servia o Estado-Maior do Exército e ao mesmo tempo chefiava o serviço secreto da AIB, foi Mourão Filho quem redigiu o “Plano Cohen” com a denúncia de que estaria em curso um plano comunista para a tomada do poder, contudo sua intenção nunca fora beneficiar Getúlio Vargas, mas sim de publicar o informe em um boletim da AIB a fim de persuadir sua audiência de que os integralistas seriam os únicos preparados para um contra-ataque à essa investida. O propósito desse artigo era favorecer a campanha de Plínio Salgado à presidência da República que aconteceria no ano seguinte, em 1938, contudo, Salgado rejeitou a publicação.


Não obstante, uma cópia do artigo circulou pela alta cúpula do Exército até que chegou à superintendência governamental de Vargas que astutamente se apropriou do documento forjado e o atribuiu à III Internacional Comunista. A falsa notícia foi difundida insistentemente pelos meios de comunicação a fim de instalar o terror de uma ameaça de golpe de estado apoiado pela União Soviética. A manchete no jornal Correio da manhã em 1 de outubro de 1937, foi a seguinte: “As intrucções do Komintern para a acção de seus agentes no Brasil”. Essa ancestral da fake news foi utilizada como pretexto para a efetivação do golpe de 1937 que consolidou a ditadura de Getúlio Vargas e a implantação do Estado Novo, o qual extinguiu todos os partidos políticos.  Ainda que Plínio Salgado tenha apoiado o golpe, e Vargas ter se aproveitado da mobilização doutrinária nacionalista do integralismo, AIB foi perseguida durante a ditadura do Estado Novo.


Com isso, Plínio Salgado foi forçado ao exílio e o movimento integralista não conseguiu mais se organizar com o mesmo vigor. No entanto, esse não foi o seu sepultamento político, anos depois, em outubro de 1958, foi eleito deputado federal pelo Paraná e posteriormente, em 1962, foi eleito deputado federal pelo estado de São Paulo. Apoiou o conluio político-militar contra o governo João Goulart e, na capital paulista, protestou na Marcha da Família com Deus pela Liberdade como um de seus principais oradores. Com a deposição de Goulart e a consolidação da ditadura militar, Plinio Salgado filiou-se ao ARENA e seguiu initerruptamente como deputado federal pela legenda até 1974, quando decidiu despedir-se da carreira política. Já Olímpio de Mourão Filho, seguiu carreira militar ascendente conquistando patentes. Participou da conspiração militar contra João Goulart que culminou no golpe de Estado de 1964 que depôs o então presidente e instaurou a ditadura. Devido ao êxito de sua participação, foi conduzido à patente de General do Exército.


O que esta breve passagem evidência é que, embora integralismo tenha se desarticulado enquanto movimento, sua ideologia se inscreveu como estrato constituinte não somente do solo do Estado Novo, mas também da ditadura militar, no interior de seu aparelho de estado, mantendo sua ideologia viva dentro das forças armadas, tangenciando a superfície do Estado. Uma fala de Plínio Salgado em resposta a um jornalista que lhe perguntou em tom jocoso sobre êxito do integralismo, esclareceu como esse programa subsistiu dentro do sistema político: “Veremos. Veja quem são os homens que estão no poder. A maioria pertence ao nosso partido e ainda hoje obedece aos princípios pelos quais lutamos e defendemos”.[11] Plínio não poderia ter sido mais perspicaz em sua resposta, a ideologia reacionária do integralismo é um projeto de país, não uma aspiração pontual frustrada. Esse projeto perseverou como um microfascismo, se capilarizando de modo subjacente no interior do corpo do Estado ao longo do tempo.


A prova de que a apuração de Plínio segue confirmada é o programa fascista de governo propagado por Bolsonaro, o qual inclusive ressuscitou o lema integralista “Deus, Pátria e Família” que seria usado como bordão do partido que pretendia criar. As atitudes de Bolsonaro durante o seu governo foram indícios manifestos de sua afiliação doutrinária e, embora tenha perdido o pleito para presidente, o bolsonarismo saiu vitorioso, visto que nomes de peso alinhados com seu programa se elegeram. Entre os deputados federais mais notórios estão: Eduardo Bolsonaro, Ricardo Salles, Carla Zambelli, Eduardo Pazuello e Bia Kicis. Entre seus aliados eleitos para o Senado, destacam-se: Damares Alves, Hamilton Mourão, Marcos Pontes, Tereza Cristina e Rogério Marinho. Isso sem contar Sérgio Moro, que habita uma zona de indiscernibilidade como aliado, mas que pactua do mesmo ideal reacionário.


Além disso, Tarcísio de Freitas venceu em São Paulo, estado mais rico da Federação e poderá usar o seu governo como vitrine de um bolsonarismo “mais racional” de perfil técnico e realizador, o que pode contribuir para a construção da fachada de uma extrema direita menos ameaçadora, o que a torna muito mais perigosa, pois encontrará menos resistência para se difundir. No entanto, por mais que Tarcísio se apresente como um bolsonarista moderado, o ex-ministro da infraestrutura integrava a ala militar do governo e estudou na Academia Militar das Agulhas Negras, a mesma frequentada por Bolsonaro. Além do que, participou de motociatas ao lado do então presidente em meio à pandemia de covid-19, é insensível às questões ambientais, aos apelos das comunidades indígenas e apoia a criminalização de mulheres que interrompem uma gravidez indesejada.


Em vista desse quadro, o bolsonarismo ratifica a fala de Plínio Salgado como um presságio. Se adaptássemos a apuração feita por Plínio para os dias de hoje teríamos algo mais ou menos assim: “vejam quem está no poder. A maioria pertence aos partidos da coligação de Bolsonaro e segue aos princípios que ele defende, são conservadores nos costumes e liberais na economia”.


O MICROFASCISMO

Para Deleuze e Guattari o fascismo não se manifesta apenas como uma forma de centralização hierárquica unificada, de cima para baixo, dentro dos governos. Vimos como o fascismo integralista fora entendido como um projeto malogrado por nunca ter chegado ao poder nos moldes macropolíticos das demais experiências históricas ditas totalitárias. Não obstante, ele persistiu como um microfascismo, com suas ideias sendo continuamente propagadas por segmentações finas em diversos estratos da sociedade, em permanente atividade micropolítica. Em Mil Platôs os autores afirmam essa característica como uma das mais perniciosas, pois o fascismo é “perigoso por seus microfascismos, e as segmentações finas são tão nocivas quanto os segmentos mais endurecidos”,[12] pois inocula-se dentro das subjetividades do corpo social.


Deleuze e Guattari classificam a macropolítica de Estado com a dimensão molar e a micropolítica com a dimensão molecular. A micropolítica, de modo ambivalente, encontra-se em oposição e em ligação permanente com a macropolítica, constituindo campos que não cessam de agitar e remanejar o interior desses segmentos. Para os autores, o regime fascista é constituído de segmentos moleculares - micro organizações e milícias -, que são atravessados por um segmento molar unificado e identificado: “fascismo é inseparável de focos moleculares, que pululam e saltam de um ponto a outro, em interação, antes ressoarem todos juntos” E quando usam de exemplo o nazismo alemão, sublinham que mesmo “quando o Estado nacional-socialista se instala, ele tem necessidade de persistência desses microfascismos que lhe dão um meio de ação incomparável sobre as “massas”.[13]


Bolsonaro fez uso dessa estratégia, mostrou-se insubmisso às leis, manteve a seus seguidores mobilizados e hipnotizados com seus ataques virulentos às instituições democráticas por meio do uso massivo das redes sociais, alimentando uma constante revolta contra a ordem. De tal modo que, quando foi derrotado nas urnas, não foi sequer necessário incitar abertamente seus seguidores contra o resultado das eleições como fez Donald Trump, pois sua militância estava treinada para decifrar códigos e agir. O silêncio de Bolsonaro foi a senha, e a mensagem dele foi que ele não reconhecia o resultado das eleições. Esse cenário de revés, alternativo à sua vitória, vinha sendo construído há tempos, de tal maneira que sua rede se mobilizou rapidamente ao identificar o sinal.


A massa bolsonarista é um arranjo de segmentos moleculares impulsionados por micro organizações descentralizadas que ativam as massas em rede intensificando seus fluxos. Por exemplo, nos levantes antidemocráticos dos caminhoneiros há claros indícios de que estavam envolvidos fazendeiros e empresários com interesses golpistas, principalmente ligados ao setor do agronegócio, financiando a mobilização dos caminhoneiros que chegaram a bloquear e interditar rodovias em, ao menos, 23 estados brasileiros com o apoio da PRF. Também não é mera casualidade que o núcleo de resistência dos bloqueios seja justamente no estado do Mato Grosso, onde se concentra a oligarquia do front agrícola, a qual além de possuir poder econômico e político, tem influência sobre as decisões dos pequenos homens de negócio, dos empreiteiros, dos executivos das indústrias locais, bem como na imprensa da região.


Esse quadro indica uma coexistência cruzada entre a macropolítica e a micropolítica, entre o molar e o molecular. De acordo com Deleuze e Guattari “toda sociedade, mas também todo indivíduo, são pois atravessados pelas duas segmentaridades ao mesmo tempo: uma molar e outra molecular”,[14] passando de uma para outra. Os segmentos moleculares de massa nem sempre são arranjos espontâneos, tal é o caso acima, podem ser micro organizações que disparam os fluxos de conexão com outros segmentos moleculares, formando uma malha que faz explodir o tumulto de modo generalizado. Para Deleuze e Guattari é essa “potência micropolítica ou molecular que torna o fascismo perigoso, porque é um movimento de massa”.[15] Nesse sentido, a micropolítica e a macropolítica se distinguem, mas não são inseparáveis no fascismo, uma vez que coexistem uma sempre pressupondo a outra.


O AUTORITARISMO E O FASCISMO PELA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA SOCIAL

Embora tenhamos identificado a persistência de um padrão microfascista no Brasil pela difusão dos ideais do integralismo, bem como sua capilaridade dentro da política nacional, mencionamos no início do texto que, em decorrência da colonização, a sociedade brasileira se fundou a partir de um modelo de família patriarcal europeu. Pela perspectiva da psicanálise freudiana, a história do patriarcado nos conduziria ao fatalismo arcaico da horda primitiva. Para Freud, o início da civilização foi marcado pelo do refreamento dos instintos humanos, pois a condição da convivência social estaria atrelada à ameaça de castração, às marcas do parricídio e a proibição do incesto. No texto Psicologia das massas e análise do Eu, Freud identifica que as mesmas condições que tornaram possível a vida em sociedade marcam também as disposições psicológicas das massas que endossam líderes autoritários.


Não obstante, Reich em Psicologia de Massas do Fascismo recusa a teoria de Freud e afirma que a “organização sexual da sociedade patriarcal autoritária, deriva das transformações da fase tardia do matriarcado”,[16] nesse sentido, defende a possibilidade de transformação desse padrão psicológico por meio da ação humana, afirmando que a “repressão social não faz parte da ordem natural das coisas. Ela tem sua origem no patriarcado e, portanto, em princípio pode ser eliminada”[17] uma vez que o patriarcado seria um modelo criado pela cultura e não uma internalização psíquica necessária. Segundo a sua teoria da economia sexual, a sexualidade foi deformada pela sociedade patriarcal, visto que a organização social original seria o matriarcado.


Reich defende que foram os interesses econômicos que determinaram o modelo patriarcal, pois “a posição política e econômica do pai reflete-se nas relações patriarcais com os demais membros da família. O Estado autoritário tem o pai como seu representante em cada família, o que faz da família um precioso instrumento de poder”. O modelo patriarcal opera por uma ressonância de identificação entre o pai-de-família e o líder ao qual o indivíduo deseja assemelhar-se. “A posição autoritária do pai reflete o seu papel político e revela a relação da família com o Estado autoritário. A posição que o superior hierárquico assume em relação ao pai, no processo de produção é por este assumida dentro da família.” Assim, Reich encontra na estrutura familiar patriarcal a chave para explicar a estrutura do fascismo.


Deste modo, como os interesses econômicos estão vinculados diretamente ao poder do patriarcado. A reconfiguração social imposta pela ordem econômica capitalista massacrou o trabalhador assalariado, frustrando esse estrato da sociedade com promessas de prosperidade não cumpridas e fragilizando a figura do pai de família. Nesse sentido, o ressentimento se manifesta como o afeto determinante que leva grande parte desses indivíduos a idealizar o passado, defender antigos valores e desenvolver um comportamento reacionário. Para Reich “o fascismo é a atitude emocional básica do homem oprimido pela civilização autoritária da máquina, com sua maneira mística e mecanicista de encarar a vida”.[18]  Essa conjuntura é propícia para que as massas se convertam no auditório de um líder autoritário, contudo isso ocorre “somente quando a estrutura de personalidade do fürer corresponde às estruturas de amplos grupos”, pois é pela identificação que o lider se transfigura em um meio de realização para os seus seguidores, na medida em que as frustrações desses indivíduos são satisfeitas através da idealização por meio da transferência.


Em vista disso, “a mentalidade fascista é a mentalidade do zé-ninguém, que é subjugado, sedento de autoridade e, ao mesmo tempo, revoltado”. Por isso, a imagem do líder deve corresponder a um engrandecimento das próprias qualidades do zé-ninguém, que faz do líder o seu ideal narcísico. Chega a ser intrigante como o exame de Reich se assemelha à figura de Bolsonaro: “O fascista é o segundo sargento do exército gigantesco da nossa civilização industrial gravemente doente. Não é impunimente que o circo da alta política se apresenta perante o zé-ninguém; pois o pequeno sargento excedeu em tudo o general imperialista”.[19] Por esse motivo que o discurso desatinado e boçal de Bolsonaro é sedutor, pois suprime paliativamente o estado de opressão que sofrem os indivíduos medianos que compõe grande massa, os quais sentem-se incapazes, humilhados e fracassados. O ódio contra aqueles que gozam de posições privilegiadas ou que exercem domínio sobre campos reconhecidos do saber, verte com sabor de revanche diante do triunfo de um semelhante.


O êxito de uma figura medíocre como Bolsonaro vinga a trajetória inglória desses indivíduos. Devido a essa identificação narcísica, seus seguidores o apoiam incondicionalmente. Em vista disso, Reich adverte que “fanático fascista não pode ser neutralizado”.[20] Existe uma economia psíquica que determina o desejo fascista. A imagem do líder satisfaz o duplo desejo do seguidor em se submeter à autoridade e ser ele mesmo autoridade, este circuito envolve tanto o desejo de fruição quanto de submissão a uma autoridade. Por esse motivo, podemos antever que a derrota de Bolsonaro nas urnas não será o fim do bolsonarismo, pois evidentemente essas massas desejam o fascismo como meio de sua própria salvação.


A breve passagem que esse texto fez pela história de nosso país indica como organização patriarcal centrada no arbítrio do pai-de-família está estreitamente vinculado ao autoritarismo brasileiro. A defesa dos valores da família foi uma das promessas que elegeram Jair Bolsonaro como presidente. Em seu discurso de posse encontramos a seguinte fala: “Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. O Brasil voltará a ser um País livre das amarras ideológicas”.[21] Na mesma ocasião, durante cerimônia de Recebimento da Faixa Presidencial Palácio do Planalto, Bolsonaro reforça a posição da família tradicional como alicerce fundamental da sociedade:


“Não podemos deixar que ideologias nefastas venham a dividir os brasileiros. Ideologias que destroem nossos valores e tradições, destroem nossas famílias, alicerce da nossa sociedade. E convido a todos para iniciarmos um movimento nesse sentido. Podemos, eu, você e as nossas famílias, todos juntos, reestabelecer padrões éticos e morais que transformarão nosso Brasil.”[22]


As declarações em favor da definição tradicional de família se mantiveram ao longo de seu governo, bem como os ataques ao que chama de “ideologia de gênero”. Bolsonaro indicou a líder evangélica Damares Alves para o antigo Ministério dos Direitos Humanos que virou, em 2019, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A advogada Ângela Gandra, secretária nacional da Família no Ministério da Mulher, afirmou que “edificar uma sociedade à margem da família seria realmente um contrassenso”. A apologia à família patriarcal é tão agressiva que pode ser enquadrada como assédio moral às famílias protagonizadas por mães solo. Segundo a PNAD, em 2019, o número de famílias chefiadas por mulheres chegava a 48% no Brasil.


As observações de Gilberto Freyre ressoam com as de Reich no que concerne ao modelo de submissão das relações familiares, pois o poder do homem estava “ligado naturalmente à circunstância econômica da nossa formação patriarcal, da mulher ser tantas vezes no Brasil vítima inerme do domínio ou do abuso do homem; criatura reprimida sexual e socialmente dentro da sombra do pai ou do marido”. Para Freyre, o sadismo do senhor sobre os escravos e sobre as mulheres presente no núcleo da família patriarcal passou a ressoar ao longo do tempo em toda ordem social: “a tradição conservadora no Brasil sempre se tem sustentado do sadismo do mando, disfarçado em ‘Princípio de Autoridade’ ou ‘Defesa da Ordem’.”[23]


Por isso, seria ingenuidade crermos que com a saída de Bolsonaro do poder em nível macropolítico, o clamor pelo autoritarismo será neutralizado. O Brasil precisa encarar de frente uma série de questões que remontam ao nosso passado colonial, à escravidão e à organização patriarcal da nossa sociedade para que efetivamente o autoritarismo e o fascismo possam ser superados.


“Uma ordem social verdadeiramente nova não exige apenas a abolição de instituições sociais de caráter autoritário e ditatorial, nem a criação de novas instituições, pois estas novas instituições, estão condenadas a degenerar em formas ditatoriais e autoritárias se não abolir ao mesmo tempo, mesmo tempo pela educação e pela higiene mental coletiva, a implantação do absolutismo autoritário introduzido no próprio caráter das massas humanas.”[24]


Na passagem acima, Reich indica um caminho que passa não somente pelo desmonte das instituições autoritárias, mas pela educação e pela saúde mental como políticas públicas. Isto quer dizer que as disposições subjetivas não se encontram condicionadas à reprodução e à submissão de organizações hierárquicas autoritárias, ao contrário, elas são plásticas e vivas, podendo ser mobilizadas em função do surgimento de novas subjetividades fora dessa estrutura, uma vez que o caráter arcaico da organização patriarcal não seria, pela perspectiva de Reich, uma determinação psíquica fundamental  ao desenvolvimento das sociedades humanas como acreditava Freud.

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NOTAS
1. Filósofa graduada pela Universidade de São Paulo, mestranda pela mesma instituição e pesquisadora do CNPq. Contato:wanda.marques@usp.br
2. SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. p.74.
3. Idem. p.74.
4. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal.p.18-19.
5. Freyre, Gilberto. Sobrados e Mucambos. p. 4.
6. SANTOS, Milton. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. p.119.
7. Idem. p.45.
8. BARROSO, Gustavo. Ganhar Dinheiro. Fon-Fon. Rio de janeiro, n. 38, pp.18, 16 set.
9. REICH, Wilhelm. Psicologia de Massas do Fascismo.p.45.
10. Idem.Trechos extraídos, p.43 e 51.
11. CPDOC: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/salgado-plinio
12. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs, vol.3. p.102.
13. Idem. p.100-101.
14. Idem. p. 99.
15. Idem. p.101..
16. REICH, Wilhelm. Psicologia de Massas do Fascismo. p.81.
17. Idem. p.203.
18. Idem. p.XVII.
19. Idem. p. XIX.
20. Idem. p. XX.
21. Discurso de Jair Bolsonaro durante Cerimônia de Posse no Congresso Nacional Congresso Nacional, 01 de janeiro de 2019.
22. Discurso de Jair Bolsonaro durante cerimônia de Recebimento da Faixa Presidencial no Palácio do Planalto, 01 de janeiro de 2019.
23. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Trechos extraídos, p.51 e 52.
24. REICH, Wilhelm. Psicologia de Massas do Fascismo.p.206.
4,5,6,7
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BIBIOLGRAFIA

ARAUJO, Ricardo Benzaquen de. Totalitarismo e Revolução. O Integralismo de Plínio Salgado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.
________. In medio virtus: uma análise da obra integralista de Miguel Reale. Rio de Janeiro: CPDOC, 1988.
BARROSO, Gustavo. Ganhar Dinheiro. Fon-Fon. Rio de janeiro, n. 38, pp.18-19, 16 set.
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_periodicos/fonfon/fonfon_1916/fonfon_1916_038.pdf
CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro. Integralismo: Ideologia e organização de um partido de massa no Brasil (1932-1937). São Paulo: Edusc, 1999. 
DELEUZE, G., & GUATTARI , F. Mil Platôs, vol.3. São Paulo: Ed. 34. 2014.
FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do Eu e outros textos. Companhia das Letras. 2011.
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Rio de Janeiro: Ed. Record. 1998.
________. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record. 1992.
REICH, Wilhelm. Psicologia das Massas do Fascismo. São Paulo: Ed. Martins Fontes.2001.
SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2006.
SANTOS, Milton. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2008.
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